quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Depoimento de João Alfredo Paranaguá Moniz


Marion, Mariucha e João Alfredo - 1924

carramanchão
João Alfredo - 1924


Quando nos envolverem
As sombras do crepúsculo,
Sentiremos a saudade
Das folhas que não tombaram

E não abrigaremos mais
As emoções dos tempos idos,
E tudo será simples como
O cair das sementes sobre a terra.


O poema acima foi escrito por João Alfredo Paranaguá Moniz e está no livro “Aurora” – Editora 34 – 2006. Não foi escrito sobre a Fazenda Paraizo, mas as “folhas que não tombaram” e “o cair das sementes sobre a terra” podem ter ficado em suas lembranças dos tempos de férias na fazenda e dos pouco mais de três anos que morou e trabalhou na Paraizo.

João Alfredo nasceu no dia 11 de setembro de 1917 em São Paulo, na casa da avó materna Elisa Whitaker de Oliveira Lacerda à Rua Brigadeiro Tobias 66. Os pais de João, Alfredo Paranaguá Moniz e Evangelina (Vangila) moravam no Rio de Janeiro, mas os quatro filhos nasceram em São Paulo. Vangila fez questão que fossem paulistas e, na casa materna, podia contar com a ajuda da mãe Elisa nos primeiros cuidados com os filhos: Caio Emanuel, Maria Elisa (Mariucha), João Alfredo e Maria Helena (Marion). João foi batizado na Igreja de Santa Efigênia.

Trabalhou desde os doze anos e se formou em Agricultura pela faculdade de Viçosa. João se lembra de percorrer a fazenda Paraizo à cavalo todos os dias. Algumas vezes, acompanhado pelo tio Amadeu Arruda Botelho, seu padrinho, casado com sua tia Brazilia (Zila) no tempo em que lá morou. Outras, com tio Asdrúbal. Deveria ter entre 26 e 28 anos quando foi trabalhar na Paraizo. Afirma que não guardou as datas. Tio Amadeu queria ver como o afilhado estava se saindo na administração da fazenda.

O café ocupava 80% das terras; os 20% restantes eram de algodão, lavoura implantada por seu irmão Caio Emanuel alguns anos antes com bastante sucesso. João aumentou as plantações de algodão que substituíram parte dos cafezais de mais de cem anos. A crise do café tinha levado à queda nos preços e o algodão passou a ter mercado nas fábricas de tecidos paulistas. Sem muito dinheiro para investir, o algodão virou 80% da lavoura na Paraizo.

João conta um pouco da história da família. Seu avô Candido, Barão de Arary, casou-se com uma sobrinha, Dalmácia, filha do Barão de Araras. Filha de seu irmão! Ela tinha treze anos e ele era muitos anos mais velho. Moravam num palacete na Avenida Paulista perto do Trianon. Uma pena que tenha sido destruído, o Trianon era parte da história de São Paulo. O Brasil não preserva nem a memória arquitetônica!

Ele também se lembra de detalhes do casarão da sua infância na fazenda, principalmente a “lida” da casa, como o forno de tijolos, tão bem descrito por tia Zila no livro “Dias ensolarados no Paraizo – 1893 a 1897”. A avó Elisa mandava vir madeira especial para acender o forno e de lá saíam “fornadas” inesquecíveis.

“O corredor acabava no quarto do forno onde havia o forno de tijolos para assar pão, bolos, biscoitos. Para aquecer esse forno, enchia-se de lenha picada. Quando estava tudo bem aceso, esparramava com uma vara comprida e continuava o fogo. Quando ia acabando, ficando só o braseiro, o teto e paredes do forno deviam estar brancos. Então, com um rodo molhado em água, puxava-se todo o braseiro para fora, com cuidado para não jogar as brasas nos pés, deixava-se o rodo, pegava-se uma vassoura verde que era um amarrado de guanchuma ou alecrim ou outras folhas, metia-se a vassoura no forno e puxava-se, varrendo bem de todos os lados. Sentia-se um cheirinho bom de alecrim. A forneira punha então no forno um pedaço de folha de bananeira, ou um punhado de fubá de milho e tampava o forno com uma tábua bem ajustada, alguns segundos, e abria o forno. Se o fubá ou a folha de bananeira estavam já pretejando, o forno estava quente demais. Pegava a vassoura, molhava de novo na bacia velha que ali estava com água e salpicava dentro do forno. Ou esborrifava a água por todos os lados. Já estava ali perto um tabuleiro com folhas de bananas cortadas em quadrados; em cada folha cabiam nove ou doze biscoitos, em forma de argola, da grossura de um dedo fino. Com uma pá de cabo bem comprido, colocava-se no forno, de uma em uma, todas aquelas folhas de biscoitos. Tampava e, uns vinte minutos depois, abria para espiar; os biscoitos já haviam crescido e grudado uns nos outros, mas faltava corar; feche depressa o forno, não pode tomar vento, abra agora o suspiro do forno. Mais alguns minutos; estava tudo bem corado, bem crescido. Deixar mais um pouco para secar. Então metia-se uma varinha no forno, fisgando pelo buraco do biscoito, levantava-se e lá vinha uma penca, outra penca. Depois do biscoito de polvilho, com o mesmo forno, enfornava-se o pão doce e, depois do pão doce, os pães-de-ló, o bolo de Jacarehy e sequilhos...”

A descrição de Tia Zila é perfeita. João se lembra que, por último, iam os suspiros que não podiam ser assados em forno muito quente para não queimar. Quem nunca comeu suspiros com o fundo meio queimado e puxa-puxa?

Tia Zila escrevia muito bem. Na verdade, todos escreviam muito bem, aprendiam “pra valer” com as frauleins. João conta que sua mãe, Vangila (Evangelina), falava fluentemente francês com sotaque alemão!

Outra história do livro de tia Zila é a do cachorrinho de mamãe – o Capi. Quando Capi morreu, mamãe enterrou-o na fazenda, fez até uma lápide no jardim onde escreveu: Ici gésit Capi qui j’aimé toute ma vie. Quando morei lá, mandei fazer no piso do jardim, círculos de tijolos em volta das árvores com bancos para sentar no meio dos passeios. Ficou muito bonito aquele tijolo no gramado verde e com a mureta vazada em volta. Nunca mais vi a lápide de Capi. Havia um carramanhão ao lado do lago onde minha mãe, vovó Elisa e minhas tias se sentavam todas as tardes para ver o por do sol. Lembro-me que o gado passava de um pasto para outro nessa hora.

Passávamos muitas férias na Paraizo. Íamos de trem, aliás a rede de trens do estado de São Paulo era magnífica! Todos os países europeus mantiveram a malha de trens, nós jogamos fora, uma pena. Houve uma pressão enorme dos produtores de automóveis, do truste da borracha...

Na fazenda, fazíamos passeios à pé e à cavalo – no caminho do mato – nas fotografias lê-se “bosque da saúde”.

Depois, tio Asdrúbal comprou a parte dos irmãos. Minha mãe deu graças a Deus porque morávamos no Rio de Janeiro. Tio Bilú não se interessava pela fazenda. Tio Theo tinha mais de dez fazendas, também não queria mais uma!

Tio Asdrúbal mandou cortar os pinheiros que vemos nas fotografias na frente da casa. Pena que nessa poda, tenham derrubado a murta que minha mãe plantou. Cada irmã tinha sua própria árvore. Não me lembro de que espécie eram as de tia Zila e tia Marocas. Coisas da memória...

José Lacerda modificou muita coisa da casa original. Gostei muito do trecho que ele aumentou no jardim atrás, depois da sala de jantar. Tinha uma vista bonita do lago.

No tempo em que morei lá, encontrei uma banheira de mármore que devia ser de vovó Elisa. Estava semi-enterrada no galpão da carpintaria. Deve ter sido “renegada” por esfriar demais a água. Imagine subir com baldes de água do fogão de lenha até o banheiro. Assim que eram despejados, a água já estava gelada! A banheira está no jardim como fonte há mais de cinquenta anos, acho que foi José que fez o arranjo.

Nas férias, tia Beatriz e tio Asdrúbal passavam temporadas na fazenda. Quando nasceram os filhos – Toty, Luly e José – iam todos. Era muito agradável e as conversas, muito gostosas. Fora da temporada, viver lá era uma solidão medonha! Minha mãe me visitava de vez em quando, não gostava muito do provincianismo do interior de São Paulo, estava já acostumada com a vida no Rio que era a capital. Ela cantava, tocava piano, escrevia poemas em francês. As pessoas sabiam declamar. Hoje ninguém sabe o que é oratória! Vinha gente de toda a parte do mundo para recitar no Rio de Janeiro. Margarida Lopes de Almeida recitava no Teatro Municipal do Rio. Nossa cultura tem andado para trás...

Nas cartas e diários de viagem de vovó Elisa, pode-se comprovar que as temporadas na Europa eram um tédio! Não iam a teatros nem concertos. Uma tristeza, no auge de Paris do começo do século XX. E os impressionistas andavam pelas mesmas ruas! Bem que podiam ter comprado alguns quadros que eram bem baratos na época, ninguém dava valor.

Tia Zila foi pedida em casamento na fazenda. Contava que desde a primeira vez que viu tio Amadeu, na sala de jantar da casa da Brigadeiro Tobias 66, seu coração disparou! Era um homem muito bonito, ela se confessou "encantada": levei três anos pensando em Amadeo. O apelidei de "Fleurange".... Depois do jantar, ouve-se a campainha. A empregada vai abrir e... quando vejo ir entrando Amadeo! Havia meses que não nos tínhamos visto. Ele muito bem vestido, de fraque, com uma boutonnière de violetas dobradas. Confesso, estava lindo, um príncipe de distinção e elegância. Eu estaquei na frente do etagère, ele chegou perto, me apertou a mão e, sem dizer nada, entrou na salinha de visita cuja porta era ali ao lado e onde estava mamãe e muitas visitas. Eu tive uma tontura! Me escureceu a vista..."

Minha mãe, Vangila, escreveu a data na parede do quarto dos meninos. Tia Zila conta no livro: "Vangila corre para cima e, não sei por que, entra no quarto dos meninos e escreve na parede: 18 de Março de 1905. Não sei bem porque escrever ali e não no nosso quarto que era ao lado, tão bonitinho, todo azul..." Quando morei lá, coloquei uma moldura para preservar aquele "anúncio", não existe mais.

Não me lembro se a fazenda chegou a dar lucro no tempo em que trabalhei lá, mas fechava as pontas, se bancava. Depois de três anos, voltei para o Rio e trabalhei como chefe de gabinete do Ministério da Justiça e do Trabalho. Com o fim da guerra, em 1945, os antigos escritórios comerciais do Brasil na Europa, foram reativados. O Plano Marshall injetou muito dinheiro na reconstrução dos países aliados e oportunidades se abriam no leste europeu. João conseguiu uma vaga no escritório comercial em Praga, na Checoslováquia, onde chegou em pleno inverno.

depoimento a Neta Mello - agosto 2009

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