sexta-feira, 30 de abril de 2010

DEPOIMENTO DE ELISA FRANCO DE LACERDA





Paraizo!
Como é bom recordar os melhores momentos da minha infância vividos literalmente no Paraizo!
Que férias eram aquelas que só conseguimos resgatar em nossas memórias, visto que nossos filhos e nossos netos, embora tenham passado férias na fazenda, já não puderam usufruir das mesmas regalias que tivemos!

Me lembro de tanta coisa que nem sei por onde começar....
Passei um bom tempo da minha infância morando na fazenda, o que não era realmente meu sonho, principalmente quando os primos voltavam para São Paulo e ficávamos naquele imenso casarão, eu e Beatriz, aguardando ansiosamente as próximas férias.

Por incrível que pareça, nessa época eu adorava acordar de madrugada para ir ao curral com os primos tirar leite da vaca com o Newton, para depois tomarmos quentinho...bom, eu nunca gostei de leite, então o que fazia era “surrupiar um dedinho de cognac ou whisky" do papai, colocar no fundo do copo e depois tomar junto com o leite! Eu não podia ficar atrás de todo mundo , não é mesmo?

Na época em que morei na fazenda, uma coisa que me lembro até hoje eram as frias manhãs ensolaradas, o lago às vezes com uma finíssima camada de gelo que, ao se dissolver, formava uma linda cortina de fumaça, os campos de capim gordura totalmente congelados à beira da estrada quando íamos para o Colégio. Papai brincava sempre que tínhamos que abaixar a cabeça quando passávamos embaixo de um grande cano...

Nunca vou me esquecer de como nos divertíamos com os primos, amigos dos primos e nossas amigas!
Eram sempre 2 turmas: a dos grandes, formada por Roberto, Carlos, Fernando, Marcelo, Leme, Max e Vergueiro e a dos pequenos, que eram Buba, Luiz, Eu Beatriz, Eduardo, Vera Heloisa, Gogó, Carmem e a Bau (Maria Isabel de Castro Lima). Embora os amigos não estivessem presentes ao mesmo tempo em todas as férias, posso dizer que todos que citei aqui certamente afirmarão que as melhores férias que tiveram na infância foram as passadas na Fazenda Paraizo.

As brincadeiras de mocinho e bandido à cavalo no meio do cafezal, aquela montanha de jatobás que colhíamos e escondíamos na tulha pra depois ver quem tinha mais, se eram os grandes ou os pequenos (me lembro que uma vez eu e o Buba descobrimos o esconderijo dos grandes e roubamos um montão!!!)

E a fazendinha dos grilos??? Nossa! Aquilo era para deixar qualquer Niemeyer com inveja! Tudo muito bem montado, as casinhas de areia, grama e barro que fazíamos, comandados pelo nosso mestre de obras Roberto!
Era ele quem sempre dava a palavra final nas construções, era muito exigente nessa parte! E depois tínhamos que caçar milhares de grilos para soltarmos na fazendinha. Era sensacional!!!.

Casas de grilo, casas na árvore, colheitas de pimenta pra arrecadar dinheiro para os bailes de carnaval, banhos de cachoeira no famoso Buracão, teatrinhos ao vivo, Max imitando Ronald Golias, armadilhas nas camas dos grandes...quanta coisa!

E os passeios à cavalo? Me lembro do Jota, meu primeiro cavalo. Tinha esse nome por ter uma letra J branca estampada na testa. Depois veio o Star. Esse tinha uma estrela branca na testa.
Mas o melhor ainda estava por vir...quem não se lembra das famosas “PASSARINHADAS” do Bainho, um cavalo pra lá de Mal Humorado que sempre dava coice quando alguém encostava a mão na garupa dele? Ha ha, e a Carmem, nossa amiga, toda vez que montava nele, o Buba sempre inventava de fazer das suas para o Bainho dar a passarinhada dele.... Isso quando não fazíamos guerra de abóboras!!!

Mas o melhor de tudo e o que vai ficar prá sempre na história foi “Asdron e Zé Miubal”, uma apologia ao Asdrúbal e ao Zé Mion que resolveram ser companheiros inseparáveis durante umas férias. Mas não se podia falar isso para minha irmã Beatriz, pois era só dizer a frase Asdron e Zé Miubal e ela se punha em prantos! Chorava até dizer chega!! Não me pergunte porque, acho que nem ela mesma sabe...!!!

Jogos de Futebol. Todas as meninas queriam segurar os relógios de cada um dos meninos! Era sempre uma briga! Eu até arriscava uma jogada de vez em quando e até ganhei o título de Ponta Esquerda Noroeste de Baurú por causa de uma camiseta vermelha que eu usava...

Os jogos eram divertidos, mas de vez em quando eles nos expulsavam para dizerem palavrões...(não podiam falar na frente das meninas). Mas é claro que não posso me esquecer do Vergueiro com sua bombinha de asma! Era só ele começar a correr e tinha que parar o jogo para ele dar umas 2 borrifadas pois ficava sem fôlego muito fácil...e naquela época a bombinha era das antigas, uma bombinha de borracha de apertar.

E na época da colheita do café?? Eu achava lindo os desenhos que os colonos faziam no terreiro com os grãos de café deixados ao sol para secar, então adorava correr por cima dos grãos e espalhar tudo!! Coitados dos empregados, tinham que fazer tudo de novo... mas o melhor era pular na palha do café. Meu Deus, não sei como sobrevivi a toda aquela poeira!!!

Quanta coisa boa! Sorvetes de carambola na casa da Isaura, mulher do Zé Mion, administrador da Fazenda. Existe sorvete melhor no mundo?? Minha memória diz que não!

E as mesas de lanche servidas no meio da tarde para nossos amigos? Era uma coisa inacreditável!!!
Bolachinhas de todos os tipos, rosquinhas de nata, 3 ou 4 tipos de geléias, broinhas de fubá, pão de minuto, pão de mandioquinha, biscoito de polvilho, sucos de frutas variadas!! Tudo feito pelas habilidosas mãos da Tata (Elisa Girão da Silva), que foi governanta do papai mas acabou ficando na família durante muitos anos, e também pela Ana (Gorda) nossa cozinheira querida e também eleita por mim a melhor coçadora de costas do mundo!!

Quanta coisa a gente fazia! Pescarias no lago, caçadas noturnas de rãs, festas de aniversários que íamos na cidade com o motorista Luizinho, na famosa Kombi, assim cabia todo mundo. Na volta enchíamos o carro de balas de coco, docinhos e outras coisinhas que pegávamos das festas, assim fazíamos a nossa festa no dia seguinte. Realmente o carro vinha abarrotado de doces! ( ai, que vexame...)

E o Galinheiro da Mamãe? Um absurdo, todas as galinhas tinham os nomes das amigas da Vovó Beata!!

Passando mais adiante, tínhamos o pomar! Uma exorbitância de frutas! Mangas variadas, Maçã, Pera, Cambucá, Guabiroba, Araçá, Framboesa, Amora, Jambo, Goiaba, Maracujá, Uva, Abacaxi, Morango, Laranja de todos os tipos, Limões também, Grumixama, Fruta do Conde, Abil...e outras mais que não me recordo no momento! Que rico era nosso pomar! Mas ainda não falei das famosas jaboticabeiras!!!

Era tanta jaboticaba, os pés eram tão carregados, que nem dava pra subir direito. Me lembro que nessa época eu nem almoçava ou jantava! Passava o dia inteiro só comendo jaboticabas! Bons tempos!!!

Me lembro do Papai fazendo mágicas na sala de jantar...a famosa bolachinha que aparecia no teto, e depois sumia, (e até hoje não sei dizer como ele fazia aquilo), ou então fazendo queijo derretido e andando com o queijo esticado pela casa....divertidíssimo!

Papai gostava muito de passear com os cachorros, na época tínhamos o Goofy, um lindo boxer dourado e muito fiel a meu pai. Depois do Goofy, papai e mamãe resolveram criar boxers, então tivemos um outro casal, mais um Goofy e a Flicka, e sempre que nasciam filhotinhos, mamãe cortava o rabinho deles!!! .

Realmente tive lembranças inesquecíveis do Paraízo, mas confesso que sempre preferi as luzes da cidade ao pio da coruja, então nos finais de semana ia sempre dormir na casa da minha melhor amiga Marilda Sallum Lopez até que papai resolveu alugar um apartamento na cidade para passarmos o fim de semana.

Depois que Papai morreu em 1987, quase não fui mais para a fazenda. Confesso que a lembrança dele naquela casa ainda é muito forte e até hoje quando entro no escritório penso que vou encontrar Papai sentadinho em sua poltrona, vendo seu programa favorito na TV, assaltando a lata de bolachas ou o biscoitão de polvilho da Ana, que eu e ele adorávamos!

Seja na fazenda ou em qualquer outro lugar, guardo para sempre a lembrança de Papai em meu coração e tenho certeza de que ele está muito feliz por tudo aquilo que está sendo feito nesses 150 anos do Paraizo. Que Deus mantenha nossa família sempre unida!

Elisa Franco de Lacerda

terça-feira, 27 de abril de 2010

PESCARIA NO PARAIZO - última geração








Maria Angela e Asdrúbal Lacerda Coelho de Paula com o neto Rafael em pescaria no lago da Fazenda Paraizo em 2010. Quantas gerações já pescaram nesse lago?

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Depoimento de Beatriz Franco de Lacerda Bacellar

Eduardo e Maurício


Beatriz e Durval na missa do centenário do casarão - 1997




amigas de São Carlos

Os primos "menores"

Falar da fazenda para mim é falar da minha vida. Fui para lá com 15 dias de vida.

Todas as minhas boas lembranças vêm de lá. Nossa casa era muito alegre, meus pais tinham uma roda enorme de amigos e consequentemente os filhos deles eram nossos amigos também.

Os dias começavam cedo porque a escola era longe e tínhamos que atravessar o rio para ir para a cidade.

Lembro de irmos de Kombi junto com os filhos do administrador Ismael e depois Papai nos levava de Jipe que era o único carro que conseguia atravessar o riozinho.

De 64 a 68 viemos para São Paulo. Papai veio fazer faculdade e nós estudávamos no Colégio Assunção. Um horror, éramos semi-internas!

A sorte é que todos os finais de semana voltávamos para a fazenda para ver se tudo estava bem. Eram os melhores dias da semana.

O duro era voltar no domingo porque na segunda.... colégio de novo. Por sorte, minha tristeza durou pouco pois Papai perguntou – Vamos morar na fazenda? Que alegria. Despedimo-nos de nossa casinha na Rua David Campista (hoje Mamãe mora lá) e lá fomos para o Paraizo.

Bons tempos!

Tudo era bom. Os empregados antigos – Alécio, Rosária e Fátima, Lilo, Milton, Edmundo, Ana – todos muito educados.

Até hoje tenho contato com a Ana (chamada carinhosamente por Gorda pois era extremamente magra) e às vezes com a Fátima, filha do fiel jardineiro Lécio como era chamado por nós.

Zé Mion, Isaura, Wilma e Serjão eram nosso dia a dia. A casa da administração é perto da nossa e sempre tinha gente por lá.

Mas o melhor da fazenda era esperar pelas férias. Que delícia..

Já que não tivemos irmãos, Elisa e eu fomos abençoadas com 8 primos irmãos que hoje são realmente como irmãos para mim.

Muita alegria, confusão, brigas e muitos, muitos passeios juntos. Era duro quando as férias terminavam e o silêncio voltava a reinar. Mas nada como esperar as próximas férias ....

Mais tarde, já tínhamos muitos amigos da cidade e era uma delícia. No final de semana a casa se enchia de amigos para passar o final de semana (na farra) porque durante a semana era só escola, aulas de piano, violão e inglês. E não tinha conversa!!!

Nossa vida era muito alegre pois meus Pais eram muito festeiros e adoravam receber visitas.

A fazenda era um ponto de referência para todo estrangeiro que viesse para a cidade. Muitos professores convidados da Federal e da USP foram recebidos na fazenda. A casinha da Tia Luly chegou a ser alugada para um professor americano, pois a fazenda era – e ainda é – um lugar maravilhoso e cheio de hospitalidade com todos que ali chegam.

Em 1974 Eduardo, meu primo, veio morar aqui na Paraizo. Foi um intercâmbio de primos!

Elisa, minha irmã, tinha entrado na faculdade e se mudou para a casa da tia Luly em São Paulo.

Foi um ano fantástico pois tinha um “irmão” e, ainda por cima, motorizado, o que nos dava uma certa liberdade de ir e vir mais vezes para a cidade. Tenho certeza de que o Dadú gostou também. Foi assim que ele conheceu a Beth.

Aos 18 anos vim para São Paulo fazer faculdade. Morava na rua Piauí num apartamento que Papai tinha comprado depois da morte da vovó Beata, quando a casa da rua Bahia foi vendida. Morei lá 18 anos....

Mas na vida nada acontece por acaso. Morava em São Paulo mas todos os finais de semana voltava para a fazenda para repor as energias.

Num desses finais de semana encontrei, num baile no clube, Durval com quem me casei e tivemos 2 filhos maravilhosos – Eduardo e Mauricio.

E a história se repetiu.

Em Agosto de 1978, Durval foi ao escritório de meu Pai na fazenda e me pediu em casamento. Exatamente igual a tia Zila, quando tio Amadeu foi ao mesmo escritório pedir sua mão em casamento para bivô Cândido!

Nos casamos em 1979 na capela da fazenda. Um dia inesquecível...

Nunca deixei de ir para o Paraizo todos os finais de semana. Em 1987, com a morte de Papai, assumi a fazenda.

Trabalhava durante a semana em São Paulo e, nos finais de semana, ia para a fazenda com as crianças para tentar reorganizar tudo. Nos últimos tempos, Papai andava bem desanimado e a fazenda estava toda arrendada e bem largada.

Com muito trabalho, dedicação e sempre contando com meus 3 mosqueteiros – Durval, Eduardo e Mauricio –, conseguimos, aos poucos, arrumar a fazenda.

Plantamos café, goiaba, novos pastos e deixamos um pouco de terra arrendada para o plantio de cana (que era a renda fixa da fazenda). Todo o dinheiro que entrava, lá ficava. E é assim até hoje....

Depois de 3 anos de idas e vindas, larguei meu trabalho em São Paulo e me dediquei só à fazenda.

Nossos filhos já crescidos, o Durval levava-os para a escola e eles voltavam no fim do dia com a perua do colégio. Com isso ficou mais fácil ficar uns dias na fazenda sem ter a preocupação com as crianças.

Ficava e ainda fico, pelo menos 4 dias da semana no Paraizo, cuidando da casa – que não é pequena – e da fazenda.

Construímos uma granja, aumentamos nosso criatório de gado Canchim e hoje podemos dizer que a casa está quase em ordem.

Dizem as más ou invejosas línguas que fazendeiros adoram estar sempre fazendo...

Em 1997, demos uma linda festa para comemorarmos o centenário do casarão.

Conseguimos juntar toda a família e amigos que vinham ao Paraizo desde a época de solteiros para matar as saudades.

Muitos não tinham voltado ao Paraizo desde 1960 quando foi a festa do centenário. Foi muito bom pois muitos já não estarão no sesquicentenário da fazenda...

Um dia, visitando a fazenda Monte Alegre dos primos Soninha e Fernão, ouvi dele a seguinte frase:

“Não sei o que essas mulheres da família têm, para gostarem tanto assim de terra!”

Respondi:

“Fernão, posso te dizer que eu também não sei, mas que gosto, gosto e muito...”

Espero por esta festa há muito tempo e temos feito o possível e o impossível para que este dia seja realmente maravilhoso.

Nos vemos em breve, na fazenda, é claro!!!!!

Beatriz

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Depoimento de Luly - Maria Lucia Lacerda Coelho de Paula

Fernando Coelho de Paula
Marcelo Coelho de Paula
Sérgio, Asdrúbal Lacerda, José Roberto, Paulo Pereira e Luly

“Paraizo, o que foi o meu Paraizo? Férias, que emoção. Passar tempo no casarão, que alegria. Ver árvores, plantações, um luar, uma cachoeira chamada Buracão, onde tinha carrapatos e uma imensa emoção como se estivéssemos fazendo um safári na África.

Mamãe me trouxe para cá a primeira vez com seis meses. Eu sempre brinco que eu não sou nem sãocarlense nem paulistana.

As jabuticabeiras que se enchiam de frutas. Eu era chamada para encher as cestas que eram mandadas pelo trem para os amigos paulistanos: jabuticaba era um fruto que nos deliciava. Era uma razão para convidar amigos, era a fruta das fazendas paulistas.

Papai, de polainas e chapéu, ia ver o serviço da fazenda à cavalo e eu ia com ele do casarão até o Alto do Jabaquara onde ainda tinha café. Foi cortado quando o vovô Cândido cedeu aquela área para nosso primo muito querido por nós, especialmente por meu pai, Caio Paranaguá Moniz, filho de tia Evangelina e tio Alfredo.

Papai e mamãe não tiveram filhos durante os dez primeiros anos de casamento, então o Caio, filho de Tia Vangila era queridíssimo deles, assim como todos esses sobrinhos. O Caio e o Gica eram mesmo muito queridos deles. Caio foi trabalhar no Paraizo para plantar algodão.

Nessa época começou a erradicação dos cafés, foi para nós uma novidade ver o algodão crescer no Alto do Jabaquara. [1939 mais ou menos].

Abrindo um parênteses. A família de Tia Vangila teve uma vida com muitas restrições porque o tio Alfredo ficou paralítico muito jovem. O Caio contava que manteiga eles só comiam no domingo. O começo da vida da tia Vangila com o tio Alfredo foi bastante difícil também porque ele ficava muito enciumado: desmanchava toda a bainha dos vestidos dela para ela não poder sair no Rio de Janeiro. Morria de ciúmes, ela era uma mulher linda!

Tão rica terra, chegou a produzir noventa capulhos [botão do algodão] por pé. E ainda era tão manual quanto o resto do serviço.

Tempos depois, Tio Théo convidou o Caio para trabalhar em Cruzeiro, onde meu pai trabalhava como sócio também. Tio Théo comprou com meu pai o Frigorífico Cruzeiro. Aí o Caio e Lucy, mulher dele, foram morar lá. E papai sempre dizia a Caio que o começo do dinheiro dele foi o algodão plantado no Paraizo, que rendeu a ele uns bons cobres, não sei exatamente quanto.

Primeiro ele foi como ajudante do tio Théo, eventualmente comprou a parte do papai.

De volta à lida no Paraizo. Quando colhido, o café ele era trazido para os terreiros em carroças. E na infância, ainda bem pequenas, nosso prazer era ver soltar os burros que puxavam as carroças que, quando livres da cangalha, se espreguiçavam na terra e levantavam um poeirão.

Saíamos em grupos a cavalo, no começo acompanhados por um serviçal [Gumercindo], depois só nós – irmãos, primos e amigos.

Eu adorava cavalos. Comecei com o Periquito, depois tive o Rex e, aos dezoito anos pedi como presente um mangalarga: ganhei o Tangará.

Mamãe, que nada tinha a ver com culinária em São Paulo, na fazenda virava doceira, boleira, fazia pães e sequilhos pelas velhas receitas de família. Era muito usado se trocar receitas: bolos de dona Alaíde; pão de vovó Eliza; creme de vovó Júlia e por aí afora. Os nomes ficaram...

Meninotas românticas, no inverno, a graça era deitar nos montes de café e ver, naquelas mágicas noites de estrela, as estrelas caírem. Podia-se fazer um pedido, mas não se podia contar que tinha visto a estrela cair.

A volta para São Paulo não me agradava muito. Sempre fui muito ligada ao verde, ao espaço. Me lembro das frias madrugadas em que o Miranda, motorista de São Carlos e, às vezes, mais um táxi – vinham nos buscar. A estrela Vésper ainda estava no céu; nunca me esqueço destas viagens de trem; que maravilha! Em geral vínhamos e voltávamos de trem da Ferrovia Paulista porque a viagem era muito penosa – eram nove horas!

Se eu continuar a pensar, escrevo um livro. Por isso, vou parar e agradecer a Deus que exista gente como a Batoca e o Durval que com muita coragem e amor são os continuadores de seu pai, meu irmão José e mais 5 gerações.

Quando vovó Eliza morreu, deixou para cada um dos afilhados, 100 contos de réis [dinheiro de 1942], se não me engano. Ela era minha madrinha. Foram gastos: parte comprando um pedaço da Santa Cruz porque eu amava a terra. Papai até me perguntou se eu tinha certeza. Fiz uma viagem com Tio Théo para os Estados Unidos, ainda com esse dinheiro e guardei alguma coisa. Fiz uma viagem com a tia Lucy para Buenos Aires. Acho que eu gastei praticamente todo o meu dinheiro nisso.

A Fazenda Santa Cruz não era nossa. Era um pedacinho que ficava “encravado” na Paraizo. O dono queria vender e papai achou interessante comprar para acrescentar aquela área ao Paraizo. Só que papai não tinha aquele dinheiro todo. E os irmãos, a essa altura, queriam todos vender a fazenda, isso sim.

Eu comprei um terço da Santa Cruz, que com o correr dos anos ficou como uma parte da Paraizo. Aí o José me propôs trocar o terreno de mamãe em São Paulo, que é vizinho de casa até hoje.

Falando sobre os tempos de criança, eu me lembro que Mamãe se dava muito bem com a vovó Elisa e com a tia Brasília. Ela morou um tempo com a tia Brasília.

Papai construiu a casa da sede no Jaú e mamãe morou um tempo lá. A fazenda se chama Santo Antônio, eu acho. A fazendo ficou com algum dos filhos do Jica. – era era o filho mais velho da tia Zila. Antônio Carlos.

José Roberto Coelho de Paula assistiu ao depoimento de Luly. São casados há quase sessenta anos. Contou o que viveram lá:

Minha primeira visita ao Paraizo tem mais de 60 anos, quando éramos noivos. Depois de casados, Sérgio e Toty também iam para a fazenda com o Roberto, o filho mais velho. No mesmo ano nasceram o Fernando, de Luly e o Carlos de Toty. Em 1951. Tivemos mais quatro meninos – Marcelo, Asdrúbal, Eduardo e Luiz Roberto. Sérgio e Toty tiveram o terceiro, Luiz. Oito netos homens! Claro que toda a turma queria passar as férias no Paraizo. O casarão tinha só um banheiro embaixo para todos!

Luly continua.

Quando José e Carmem se casaram e foram morar na fazenda, logo nasceram Elisa e Beatriz. E a casa não comportava tanta gente nas férias. Passamos a revezar – Toty e os filhos passavam uma temporada, eu e meus filhos, outra.

Pedi a José que se vagasse uma casa na colônia, nós faríamos uma pequena reforma para termos um canto nosso. Livraram duas geminadas.

Fizemos uma reforma bem precária com o único dinheiro que Toty e eu recebemos da Paraizo ao longo dos anos. Nós aplicamos na reforma da casa que não tinha banheiro, não tinha nada. A cozinha era do lado de fora. Nós não tínhamos para investir: era começo de vida, criançada pequena, uma luta.

Nós ficamos nessa casa para que Carmem e Toty pudessem ficar à vontade no casarão. Assim, ficavam cinco crianças e não dez! Tinha uma cachoeirinha na frente da nossa casa, que a gente ia buscar água. Pegava a estrada, entrava no pasto e do pasto, o riozinho que saía do lago e lá tinha essa mina d’ água. Era uma cachoeirinha muito lindinha.

E foi assim, tarde calma, José, meu irmão, e eu resolvemos dar uma volta no pomar do velho e querido casarão do Paraizo, em direção a picada do mato, que confinava com o pomar. Caminho aberto no meio da mata. Era como se estivéssemos adentrando um pedaço de selva.

De repente José disse: Vamos vender essa fazenda, só dá trabalho, estou cansado.

E eu, para quem aquele pedaço de terra era muito especial disse: mas José isso é nosso, porque cada um de nós não assume a sua parte sem onerar a mamãe nas rendas devidas. Faríamos esse compromisso. Éramos todos moços o bastante para criar uma fazenda.

Foi assim que surgiu a ideia da partilha, tirando do José uma responsabilidade cansativa. Assim que nos reunimos e discutimos como seria essa divisão, Toty e Sérgio bem como nós dois achávamos que a sede que tinha sido mantida por José e Carmem Sylvia até aquele momento, com carinho, deveria ficar no pedaço deles. Esse casarão foi construído por Candido e Eliza, meus avôs em 1897.

Asdrúbal e Beatriz, meus pais, sempre tiveram com essa sede o mesmo carinho que meu irmão. Para nós, era uma alegria as férias na fazenda, não queríamos outro lugar, às vezes íamos a sós às vezes levávamos amigos. Quase sempre íamos pelo trem da Paulista que era uma maravilha e algumas outras de carro, o que representava muito boa disposição de meu pai, pois o carro às vezes quebrava e ele é quem tinha que consertar tudo, pois não havia o menor socorro nas estradas. Era tudo muito primário.

Da parte de mamãe sempre havia um farnel, pois as viagens chegavam a durar até 9h. Era uma farra sentar embaixo de uma árvore e fazer um piquenique, apesar dos percalços nunca houve mau humor nessas viagens.

Sempre gostei do Jabaquara, a área que nos coube na partilha.

A gleba do Paraizo era um grande retângulo, onde num dos extremos ficava a sede e o lado oposto a isso era o Jabaquara. Era muito comum eu ir com meu pai à cavalo pelo carreador central da sede até o alto do Jabaquara. Vestia-me sempre de calças de montaria e botas até o joelho, pois muitas vezes tínhamos que andar em campineiras onde havia o perigo das cobras. Mouro e Periquito eram os cavalos mais velhos e que nós usávamos, depois foram comprados Pipoca, Rex e outros que usávamos quase todos os dias. O Tangará ganhei de meus pais como presente dos 18 anos, foi comprado de uma fazenda de um amigo de meu pai que ficava em Laranjal.

Luly montada no Chiquinho

Prontinha com o chapéu na cabeça e o rebenque na mão lá ia eu com o Zão, era como chamávamos nosso paizão, era passeio e trabalho, pois era durante essa caminhada que meu pai ia vendo o serviço e dando as ordens quando necessário. Saíamos cedo e voltávamos na hora do almoço, às vezes sob um sol escaldante e às vezes um gelo.

Quando papai assumiu a fazenda, grande parte era de cafezais que já velhos, mas ainda produtivos. Na baixada da várzea que era chamada de Japão, pois lá havíamos tido arrendatários imigrantes japoneses que não falavam português e tinham hábitos muito singelos. Construíram suas próprias casas de sapé e bambu em chão de terra batida e cultivavam uma boa área de arroz. Era uma gente muito arredia, nunca entramos em nenhuma das casas.

Passando a várzea começava o café, todo o lado direito até o alto do Jabaquara e do lado esquerdo havia a mata virgem que nunca foi cortada, 40 alqueires. A nossa divisão Jabaquara-Paraizo era o ribeirão dos Negros. Que cortava a várzea em direção a represa do 29. Atravessando a Fazenda Morro Alto, nossa vizinha, e também algumas terras do Canchim. Uma vez feita a partilha cada um de nós começou a construir a sua fazenda.

Toty e Sérgio construíram na Santa Cruz uma casa pequena, já planejada para crescer. A fazenda dela confinava com o Paraizo e conosco num trecho onde havia uma estrada de ferro de bitola estreita da companhia Paulista. Com o Paraizo a divisa era feita com o córrego do Paraizo que despencava num salto até as terras baixas para se encontrar com o Ribeirão dos Negros. Foi um tempo muito bom em que nós, Zé Roberto e eu planejávamos e construíamos nossa fazenda. Não havia nada no Jabaquara, nem tulhas, nem terreiros, nem casa de empregados, nem luz, nem água encanada e nem telefone, começamos do zero.

Havia alguma plantação de café que nós mantivemos, plantamos uma nova área com café, tínhamos uma área de milho e outra de pasto. Foi conosco, como administrador, Jaime Mion, filho do muito antigo administrador do Paraizo, era bem mocinho, eficiente e trabalhador. Só que como perfeição na existe, ele se arvorou em sócio do material que mandávamos para construir nossa fazenda, mas isso só foi percebido tempos depois. Construímos uma boa casa que imaginávamos um dia transformar em moradia do administrador, escritório e depósito. Construímos também a colônia, cinco casinhas feitas com capricho e com o mesmo material que usamos na nossa casa. Uma bela área no entorno das casas, tudo na mais perfeita ordem. Refizemos a tulha que estava caindo e fizemos o nosso próprio terreiro. Tudo era prazer.

O entusiasmo de Zé Roberto e meu era enorme em ver a casa crescer. Tínhamos dois pedreiros, Pedro Gandolphini e Angelim Ferrarini, ótimos, e um servente, uma pessoa muito educada e inteligente e diferenciada, Geraldo de Melo, cujo filho foi mais tarde trabalhar na Santa Cruz e ficou como administrador até hoje na fazenda de Toty e Sérgio - o Antônio.

Chegava sexta-feira à noite. Era por a criançada no carro, mais gatos e papagaios e ir para o Jabaquara, que maravilha! Luz, água, telefone, estradas e cercas, tudo foi feito por nós, antes não havia nada. Fizemos ainda um curral e uma estrebaria.

Asdrúbal Lacerda Coelho de Paula, Luly e Toty

No Jabaquara tinha um salto e a água provinha de uma matinha cheia de palmitos, era um lugar encantador. Fazíamos divisa com uma estrada municipal entre nós e o Otavio Pinho. Do outro lado, com a Fazenda Morro Alto e do outro lado com a Fazenda Sapé.

Uma área plana que havia no Jabaquara foi emprestada por meu avô Candido a seu neto, Caio Paranaguá Moniz que lá plantou algodão com enorme sucesso.

Caio também plantou eucaliptos em volta de toda essa área o que a deixou muito bonita. Esse primo era muito amigo e foi convidado por tio Teodoro para gerenciar um frigorífico que eles compraram em Cruzeiro.

Essa divisão feita por nós só nos deu alegria, nossos filhos cresceram nessa terra e sendo um grupo muito amigo, as férias eram uma farra. Nem se pensava em rádio ou televisão, tínhamos mais tempo para ler e pensar. Gozar das coisas mais  simples da natureza sempre foi o nosso prazer.

O Jabaquara passou para as mãos do Asdrúbal quando ele voltou formado de Piracicaba como Engenheiro Agrônomo e aí surgiu a possibilidade da compra de uma fazenda vizinha chamada Floresta e assim continuou a nossa vida de reformadores de fazendas. A Floresta tinha uma sede de 1880 que estava semi-abandonada e mais 80 alqueires de terra, duas cachoeiras. Era uma gleba linda e foi um prazer reforma-la durante 30 anos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Do livro de Tia Zila – “Dias ensolarados no Paraizo”


Segundo a historiadora Marina Maluf, “Brazilia se impôs a tarefa de fazer a crônica da vida da casa, de seus costumes e arranjos. Procurou também observar o movimento da fazenda e seus tempos de plantar e de colher – o ritmo de vida rememorado parecia, afinal, obedecer a uma só temporalidade, a dos cafezais.... as reminiscências de Brazilia sugerem antes um “conferir” que uma reflexão para capturar o sentido da vida que levou. Ela ordena a multiplicidade de acontecimentos, mas a rigor, ao escrever como ato de dignidade, parece não rememorar para construir um novo ponto de vista sobre si mesma... Brazilia procura ser a grande ausente de suas memórias e diários e, no entanto, se mostra e se esconde na mesma frase, num jogo inconsciente de ocultamento.... Ao rememorar, a autora repete a representação social enquanto cronista da casa e da fazenda: ela é o sujeito documental que ordena e racionaliza lugares e imagens, como um arquivo que é consultado toda vez que se busca uma lembrança. Brazilia manteve na mente a casa e a Fazenda Paraizo sem, no entanto, constituir espaços cuidadosamente habitados. Sua memória visita lugares, resgata objetos arrolados como uma espécie de alfabeto interno, e faz uma leitura desse material seguindo uma cuidadosa sequência, de modo a não espacializar valores e significados de sua intimidade. Para ‘entrar em casa’ e descrever a ala íntima, ela recorre a Asdrúbal, seu irmão:

“De noite cada um pegava um castiçal e ia para seo quarto. Asdrúbal já tinha 4 annos, quando ia sosinho para seo quarto. Era alli mesmo, perto da sala; um quarto grande com 2 janellas dando para o terreirinho. Dividia o quarto um tabique de madeira envernizada que tomava 2 terços do quarto, deixando uma passagem perto das janellas.... D’esse quarto passava para o quarto de meus Pais. Também alli havia um tabique de madeira fazendo um quartinho menor que era o quarto de vestir de Mamãi, janellas para o terreirinho... vidraças de suspender, presas no meio da altura com borboletas e folhas de madeira envernizadas fechavam as janellas. Os trincos eram muito bons, em ferro; prendia em cima com um gancho e descia em varão que virava e prendia no meio, atravessando sobre a outra folha de madeira. Em todas as outras fazendas, n’aquelle tempo, eu via só tramelas de madeira; uma em baixo e outra em cima, tinha que ser aberta com um pau ou bengala” (essa descrição é da casa antiga, não do casarão construído em 1897)

Na verdade, diferente da afirmação de Marina Maluf, Tia Zila, como é chamada por todos os descendentes, mostra um lado feminino ao contar sobre seu amor à primeira vista por Amadeu. Observa-se também que o papel da mãe Elisa era o de cuidar do casarão e da educação dos filhos – um matriarcado dentro de casa. Vovô Cândido se ausentava, passava tempos em São Carlos. Uma das netas de Elisa, Toty Lacerda de Figueiredo Mello confirma um “arranjo” no casamento – vovô Cândido esperava que Elisa cuidasse dos filhos e da casa e ele tinha liberdade para aproveitar a vida fora de casa.

As mulheres da família Lacerda são firmes, dão enorme valor para a família. Uma linhagem de mulheres de enorme garra que podem ser definidas por algumas palavras – disciplina, cuidado, discrição. Não são grandes demonstradoras de afeto por gestos nem palavras, mas nos detalhes com a casa, com o jardim, nas comidas e doces, no receber, nos presentes. Tia Zila, segundo vários depoimentos, era uma pessoa extremamente afetuosa com os filhos, netos, bisnetos e sobrinhos.

Tia Zila, muito apaixonada por Amadeo durante três anos, confessa: ... não queria que vissem que eu estava "presa" e enlevada por Amadeo. Aquilo era um segredo guardado no fundo do meu coração... Amadeo sai do quarto, vai para a sala de jantar. Servem-lhe café, vai para o terraço, me dá "bons dias" e me convida a passear. Eu palpitei que devia ser uma passeio maior e saímos pelo caminho da Amoreira que ia beirando o terreiro... Já estávamos bem longinho quando ele me diz com voz muito emocionada: "Quero saber se você consente que eu vá pedi-la em casamento ao seu Pai." Eu refleti um instante disse: "Sua Mãe o que diz a isso?" Responde ele: "Mamãe faz o maior gosto nisso". "Então eu também fico muito contente." Nos olhamos discretamente; ele não me tocou nem na mão; continuamos a andar procurando conversar mas pouco falamos....

Marina Maluf observa hábitos descritos nos diários, como “os espaços de separação entre proprietários e empregados. Ela (Brazilia) registrou que todos os dias, no final da tarde, depois do passeio da mãe, toda a família sentava-se no terraço para tomar café.”

‘Ao escurecer chegava o empregado, nunca se teve administrador, era um Fiscal ou ajudante. Durante annos foi o Marciano Casanova, mulato antigo escravo. Depois foi o Antonio Lourenço, português... Mas hoje quando penso como era, eu estranho. Papai nunca fazia entrar, nem sentar-se esses empregados. Elle tinha os serviços já tão certos e penso que já teria durante o dia corrido tudo que já estava a par, então aquella conversa era só para dar as ordens para o dia seguinte e fazia rápido....Si o café chegava na hora, serviam uma chicara ao Fiscal que tomava alli mesmo em pé, dava boa noite e se retirava.

O hábito de conversar sobre o que seria feito no dia seguinte era comum em todas as fazendas da época e assim permaneceu até os anos 80 do século XX. Correr a fazenda à cavalo todos os dias foi, aos poucos, substituído por carros ou jeeps. Muitas fazendas passaram a ter gerentes além do administrador e a região de São Carlos “abandonou” o café depois de seguidas geadas e a cana tomou conta da paisagem.

Trechos do livro de Tia Zila sobre a vida na Fazenda Paraizo e dos tempos em que iam passar temporadas em São Paulo, seguem reproduzidos como registro de uma época e dos 150 anos da fazenda.

Eu tinha 6 anos quando chegamos na Fazenda Paraizo, 1893. Não me lembro se descemos na estação de São Carlos ou na estação de Floresta que ficava mesmo nas terras da fazenda. Vangila tinha 4 anos e Asdrúbal tinha 2; eram meus companheiros o dia inteiro. Ele tinha cabelos loiros, cacheados, era bem claro. Carinha cheia, quando corria, por fora ficava bem corado. Nós o achávamos lindinho; era manso e bonzinho. Eu e Vangila tínhamos a cor de Papai! Até uma vez na Estrada de Ferro, em viagem, nos encontramos com tio Antonio Carlos (Conde do Pinhal). Ele veio logo conversar com meus pais, nos fez festa. Mais tarde soubemos que ele dissera: “nem a brancura de Elizinha pôde com a cor dos Lacerdas.” E eu digo hoje: mal sabia o tio Antonio Carlos que nem o vermelhão de Amadeo pôde com a palidez dos Lacerdas, pois que a maioria de meus filhos é pálida e morena.

Lembro-me tanto da casa no Paraizo. Entrava-se numa sala que chamavam de alpendre. Esse alpendre tinha as paredes pintadas, penso que era a óleo, pois era lustroso e formava quadros com um frizo de cor mais escura e, no centro do quadro, era todo riscadinho, imitando mármore. Tinha um sofasão com palhinha no assento e no espaldar, espaldar alto e braços de madeira. De cada lado do sofasão, uma mesinha retangular de 1 x 50, pernas torneadas, com uma prateleira entre o chão e o tampo da mesa. Em cima havia dois vasos, um rosa, outro cor de café com leite; pareciam vidro grosso, opaco, a beirada, digo, a boca toda recortada e doirada. Na outra mesinha havia um lampião que acendia com querosene. Tinha mangueira de vidro e abajour de porcelana branca com uma paisagem em cor, uma casinha, árvores, riozinho. Havia ainda outras cadeiras com assento de palhinha, mais simples. Em madeira forte, envernizadas, cor avermelhada. À direita entrava-se na sala de jantar. Era grande, tinha duas janelas para a frente, uma janela de uma porta para o lado de trás que era como um terreirinho. Terra bem batida, calçada de tijolo abeirando a casa. Afastado de casa uns oito ou dez metros havia um muro, subia-se uma escada de tijolos, de uns dez degraus e dava no terreiro de café que era bem grande, uns 200x50 metros. No terreirinho, bem encostado no muro, havia um jardinzinho, só tinha dálias de várias cores; protegia o jardinzinho uma cerquinha com tela de arame. Aos domingos, mamãe enfeitava os vasos com essa dálias que eram pequenas e jeitosas e a folhagem era galhinhos de alecrim, estes são muito jeitosos, em forma de palmas; folhagem bem lustrosa. E ... de noite o alecrim dormia, tanto o que estava nos vasos, como a arvore inteira. Ficava bem fechadinho! Todas as folhinhas dobradas. Mamãe nos mostrava e dizia “elas vão dormir”. Só havia um étagère na sala de jantar: tampo de mármore, duas gavetas, armário embaixo, para cima do mármore duas prateleiras em madeira. Usava-se, nesse tempo, forrar as prateleiras com toalhinhas brancas e crochê na beirada que ficava aparecendo. Ali se arrumava os copos que estavam em uso. Na prateleira de cima, cada noite, via-se enfileirados uns seis castiçais em latão amarelo com velas bem brancas e grossas. Umas inteiras, outras já gastas, mas bem limpas. Dois dos castiçais tinham velas “Clichy”; eram para papai usar na mesa do escritório. De noite, cada um pegava seu castiçal e ia para seu quarto….

… Esses fechos da casa no Paraizo eram já mais civilizados. Os meus tios Antonio e Juca, pelo que me lembro, gostavam de tudo bem arrumado, tinham na fazenda um carpinteiro alemão que fez todas as mobílias, e um ferreiro que tinha uma tenda completa onde fazia as ferragens;

fazia as carroças e carroções ali mesmo. Isso, penso, que alguns anos depois pois que ao começarem era só uma grande mata, onde fizeram os ranchos e plantaram os primeiros cafezais. Preciso pedir a José Lacerda as datas e os dados todos do começo da fazenda. Na sala grande que era toda empapelada, assim como os dormitórios, via-se nos cantos uma coluna roliça. Papai me contava que eram os esteios do rancho pois que fazia-se um rancho coberto de sapé. Só mais tarde, quando já tinham feito uma olaria, é que tiveram telhas para substituir o sapé.

E as paredes do rancho eram feitas de barrote. Chamavam barrote em gradeado, feito com ripas de coqueiro bem amarradas nos cantos e nos esteios. Se o rancho era muito grande, havia esteios no meio do comprimento do rancho. Esse gradeado era coberto com terra bem molhada; se a terra era meio piçarra, grudava melhor. Esse era o princípio.

Algum tempo depois, já cobriam as paredes com reboque feito com areia. se tinha cal nesse reboque, eu não sei. Não tenho mais ninguém daquele tempo para me contar. Os meus tios eram tão caprichosos que forravam as paredes com papel. Me lembro muito bem do papel da sala grande: tinha bananeiras verde claro. Os do escritório de papai era marrom e doirado. Nos quartos era papel com ramagens, não me lembro a cor. Havia três quartos para hóspedes. Boas camas, poucos armários. Havia um piano Pleyel….

… O que era primitivo e péssimo eram os sanitários. Só havia fossas, com uma banca de madeira em cima e dentro de uma casinha. Uma lá do lado do corredor da cozinha para os empregados e uma no terreirinho para nós. De vez em quando, papai mandava por cinza dentro das fossas, outras vezes, cal. Vim também porem uma pedra azul dissolvida em um balde de água; penso que era sulfato de cobre. Papai dizia “é muito venenoso; não deixem nada no balde”. Imaginem o que aconteceu uma vez. Ninguém o viu cair, mas ouvia-se o miado do mísero bichinho. Só em pensar que ia morrer ali afogado, nós ficamos muito aflitos! Tanto pedimos que mamãe chamou o Severiano e que trouxesse uma escada. Então o rapaz foi descendo devagar, agarrou o gatinho pela pele do pescoço e salvou-o. Mas... foi necessário dar-lhe um grande banho com água e creolina. Depois o pusemos debaixo de um grande cesto, no sol, para secar, senão iria se meter debaixo de um móvel assim entanguido…

… Mamãe sentava-se numa marquesa na sala de jantar onde havia melhor luz. Penso que algum estaria com calo no pé, pois tinha perto um vidrinho de Mainardina. Não sei como, estando perto de uma vela, pega fogo no vidrinho, faz grande labareda e Mamãe que tinha lavado os cabelos e estava com eles ainda soltos. Era uma cabeleira enorme. Foi um susto, pois quase o fogo pega nos cabelos. Esse serviço feito, nós íamos para cama. Uma vez tínhamos inventado um brinquedo muito bom. Cortávamos uma grande cidra pelo meio tirávamos o miolo e ficava como uma tigelinha. Enfiávamos um barbante em 2 furinhos, como se fosse um baldinho e pendurávamos esses baldinhos num prego, na ripa de uma cerquinha que tinha perto de casa e onde tinha uma boa sombra de amoreira. Estava uma lindeza, muitos baldinhos pendurados. Mas no outro dia Vangila apareceu doente com indigestão, Mamãe procura a causa e disse que era o miolo da cidra que Vangila havia comido e proibiu o brinquedo.

Debaixo da mesma amoreira Papai havia amarrado um balanço, novinho, cordas bem fortes. Era uma delícia aquele balanço! Um dia eu me pus em pé no assento do balanço e tão forte me balançava que perco o equilíbrio e caio em cheio com o peito no chão. Penso que desmaiei, pois não vi mais nada. Só me lembro de estar deitada na sala de jantar, no sofasão, e ouvia Mamãe dizer: “vão já cortar as cordas e tirar o balanço da árvore” E acabou-se aquela delícia de balançar. Me parece que foi um pouco nervoso, exagerado, pois que a vida toda vejo crianças se balançarem e nada acontece. Aquilo foi mesmo muito descuido ou reinação minha.

Uns 3 anos depois de estarmos no Paraizo, lembro-me que ouvia Papai e Mamãe falarem em casa nova. Papai sempre fazendo desenhos. Bilu já tinha nascido; era um lindo menino mas Mamãe não teve leite para amamentá-lo, ele não se deu bem com o leite de vaca e estava muito doente. Veio vovô Justiniano visitar-nos. Ele voltou logo para as Palmeiras e de lá mandou uma moça italiana chamada Ângela. Veio com o filhinho pequeno, tinha tanto leite que dava para seu filho e para Bilú. O marido de Ângela não sei se veio junto ou se ficou nas Palmeiras. Bilú logo sarou, engordou e então começou a tomar ma madeira com mingau de Phosfatina Fallière, receitado pelo médico de São Carlos, Dr. Silva Rodrigues. Eram umas latinhas com um pó como cacau bem claro, vindo da França e era muito gostoso.

Mamãe me ensinou e eu fazia as mamadeiras para Bilú numa panelinha de ágata azul, no fogareiro com álcool, ali mesmo na sala de jantar. Ás vezes punha álcool demais no fogareiro, que era bem primitivo, e custava a apagar. Fazia uma labareda e eu tinha tanto medo. Tinha só 8 anos. Bilú era muito exigente, não queria ficar no carrinho. Era um lindo carrinho de junco todo forrado de oleado e com bom colchão e roupas bonitas. Mas o talzinho chorava e quando Mamãe estava muito atarefada, eu tinha que empurrar o carrinho de um lado para o outro da sala. Depois eu tinha que dar a lição com Mamãe e vinha Vangila empurrar o carrinho…

… Asdrúbal já tinha cortado os cachos e já vestia calcinha e blusa russa. Era muito bonzinho, mas Bilú era terrível, não queria ficar com a pajem, trazia Mamãe de canto chorando. Vangila era boazinha, nunca brigávamos, mas houve algum tempo que Vangila teve “ataques de bichas” era como dizia o médico. Ela acordava gritando e chorando, sendo necessário esfregar-lhe nos pulsos e nas frontes vinagre com folhas de hortelã. E foram tantas vezes que Mamãe já deixava no quarto o tal vinagre com folhas de hortelã e eu mesma aplicava em Vangila, até que Mamãe se acordasse e logo tudo serenava e continuávamos a dormir.

… No Paraizo as conversas de casa nova continuavam. Mamãe nos ensinou a ler, escrever, contar e a Geografia; o que eu me lembro, mamãe ensinava muito bem. Nos mostrava no Mapa. Sabíamos “na ponta da língua” como se dizia, as 5 partes do Mundo, mares, países, rios, lagos, montanhas, cidades. Nos mudamos para a casa nova no ano de 1897. Então tivemos a primeira Professora. Senhora alemã, Fraulein Walsman. Nos ensinava português, francês, aritmética, geografia, historia Santa, piano e ainda trabalho com a agulha. Essa senhora era tratada por meus Pais com toda consideração e bondade; ganhava quatro contos por ano, livres, viagens, passadio, tudo por conta de Papai. Tinha um bom quarto, uma sala para dar as aulas e um terraço com bonita vista. Algumas vezes estávamos em aula e ouvíamos os gansos do lago em grande agitação e cantoria. Pedíamos licença para a Fraulein e íamos olhar na janela; era quase sempre uma visita que chegava de trolley ou algum passante como o Sr. Joaquim Alves; esse vizinho tinha licença para passar pela nossa fazenda para encurtar o caminho. A curiosidade satisfeita, voltávamos para nossas carteiras, mas Fraulein tinha algum trabalho para pôr nossas cabeças no estudo novamente. Tivemos outras professoras. Uma delas era uma bonita moça, dizia-se nobre chama-se Elvira Von Bragdorf. Mas não era boa de lecionar e não durou muitos meses. Tivemos uma velhinha muito boazinha, Fraulein Josefine. A melhor foi Fraulein Paulina Perger; essa estivera 20 anos no Rio, lecionou as filhas do Conselheiro Lafayette e os filhos do Barão de São Clemente. Essa gostava de ler o Jornal do Comercio e conversava com Papai e Mamãe sobre política e tudo mais. No dia de São João inaugurou-se a casa nova. Fizeram lindas festas no terreiro. Sr. Estevam e Nhá Tertuliana eram muito sabidos em costumes, cantigas e danças. Fizeram o que eles chamavam Congada. Eram danças onde aparecia um boi feito de pano; dois homens iam dentro e faziam proezas. Homens e mulheres vestidos como rei, rainha, pajens; cores vivas e roupas vistosas. Mamãe mandou fazer tachadas de doce de batata, abóbora, cidra, laranja, pé-de-moleque e cocada. Leitão assado e mais tanta coisa! Arrumaram uma mesa comprida com tábuas e cavaletes, coberta com pano branco banco de taboa de cada lado e ali serviram um lauto jantar para toda a colonada e para todo o pessoal da fazenda. Seguiu-se o baile, samba e Congada, ali mesmo no terreiro, na frente da casa nova. Isso foi de tarde; pela manhã tinha havido uma bonita Missa rezada pelo padre Victor e assistida por todos da fazenda.

1897. Continuávamos a estudar na fazenda com professora. Pouco saíamos da fazenda. Passeávamos muito a pé com Mamãe. As professoras não gostavam de sair do jardim; tinham medo dos bichos de pé. Só uma delas, a Mme Perger, era já bem idosa, mas muito forte. Tinha morado no Rio 20 anos. Essa saia cada dia de tarde, mas gostava de andar bem depressa e sozinha. De volta do passeio a pé, nos sentávamos no banco do terraço que era bem cômodo. Havia ali perto duas cadeiras de vime que eram para Papai e Mamãe; naquele tempo havia sempre uma pequena diferença entre os grandes e os pequenos. As cadeiras melhores, os doces mais finos, o filé, o peito de galinha! Primeiro serviam-se os Pais. Hoje, vejo crianças na mesa dizerem logo: só quero carne branca.

… Não sei como é que Mamãe gostava da rede, pois estava sempre encoletada. Embora não fosse apertado, tinha barbatanas no colete. Asdrúbal, que nós dizíamos Loti, sentava na mesa grande com o livro “Mon Journal” e tampava os ouvidos com o polegar e as mãos apoiando a cabeçorra, cabelos sempre cortados rente. Papai cortava com a máquina. Ficava ali entretido com a leitura até as 8 ½ h. A essa hora Papai vinha do escritório para tomar chá; já ali estava arrumado com Pão de Ló de Jacarehy, biscoitos de polvilho, etc. Era a mesma fartura que os lanches de hoje. Os gatos ficavam no terracinho e logo que se apagava a luz do escritório, eles se esfregavam na porta da sala de jantar para Papai não se esquecer deles. E era cada dia a mesma coisa: ganhavam um prato de leite e pão ali no chão do terraço. Nesse tempo já não tinha mais o Sr Romão; meu gatão querido já tinha morrido.

Tinha o Capi, cachorrinho de raça Mobs, muito bonitinho. Era de Vangila; dormia no corredor da casinha, debaixo da escada, numa caminha com colchão e lençol. As 9 h subíamos nós 3 e nos deitávamos em dois quartos que davam porta para o quarto de nossos Pais. Eu ainda lia um pouquinho na cama; Vangila ficava em pé na cama, pegava as cobertas nos ombros, se enrolava nas mesmas, com o pé puxava bem a ponta do lençol, então deixava o corpo cair sobre os joelhos e depois deitava-se. Parecia um cartucho ali na cama.…

Em 1897 nos mudamos para a casa nova do Paraizo. Não me lembro em que mês foi isso; talvez no mês de Junho, pois nas festas para a inauguração da casa, houve fogueira, fogos e danças no terreiro. Também não me lembro como foi a mudança, nem a impressão que tive dormindo no sobrado; no quarto novo era tudo azul, isso eu me lembro; entrava-se pelo quarto de meus Pais ou pelo quarto dos irmãos. Bilú já tinha quase 2 anos, era um lindo menino, tinha uns olhos bonitos, cabelos cacheados, uma boquinha vermelha. No terraço da sala de jantar nós o medíamos; era justo da altura da grade. Andava sempre com umas camisolinhas muito bonitas, espécie de vestidinho, pois naquele tempo os meninos só vestiam roupa de homem de 5 a 6 anos para cima. E até essa data de cabelos cacheados e compridos.

De noite, Mamãe na rede com Bilú no colo, ali no canto da sala de jantar. Asdrúbal lendo “Mon Journal” na mesa grande, eu e Vangila fazendo algum trabalho de agulha, sentadas nas cadeirinhas de vime que traziam do terraço. Durante alguns meses houve coisa que nós meninas achávamos graça. Chegava na porta da sala a preta Delfina, ótima cozinheira e dizia: “Sia dona Eliza, já acabei”. Era para ganhar um cálice de pinga e ia dormir. A Delfina tinha o vício de se embriagar, então descobriu esse jeito. Eu me levantava, tirava ali do armário a garrafa, enchia o cálice e entregava a Delfina. Ela fazia uma cara radiante, bebia e ia estalando a língua e gingando ou se requebrando toda. Ia direto para o quarto, dormia e amanhecia bem. E assim durante mais de um ano a Mamãe pôde conservar a Delfina. Pois quando ela quis sair, me entregou um bauzinho com algumas roupas e 1 quadro de santo. Foi para Capivary e nunca mais voltou. Nem me lembro o que fiz do Santo e das roupas da pobre Delfina.

… Todas as tardes saíamos para passear a pé. Um caminho que gostávamos muito era o seguinte: Perto da máquina (casa da máquina de beneficiar o café) havia um pulador. Chamavam um pulador uma escadinha dos dois lados da cerca, para não ter porteira, pois só deviam ali passar pedestres. Descíamos no pasto atrás da Serraria, ali sempre cheio de toras de madeira, e muitas vezes a grande serra trabalhando, outras só a serra circular, que cortava a lenha e outras coisas menores que as toras. Entrávamos, dávamos boa tarde ao Agostinho: aquele cheirinho de madeira serrada. Saíamos do outro lado e descíamos pelo pasto até o rego d’água do Monjolinho. Eu achava uma beleza aquele riozinho de água clara, mesmo cristalina, por cima de umas pedrinhas. Passávamos a ponte e, antes de seguir o passeio, virávamos de lado da casinha do Monjolo. Mamãe abria e entrava para ver se estava limpo e em ordem. Saíamos, continuávamos até a colônia.

Eram 5 casas unidas onde moravam só pretos. A primeira casa de Manoela... não me lembro o nome do marido. Ela era muito feia e tinha o corpo igualzinho com os figurinos d’aquele tempo: o traseiro bem empinado e o busto bem cheio, mas caindo sobre a cintura. Mamãe tinha às vezes ataque de riso quando lembrava da Manoela. Outro casal era Clemencia e Benedito, muito bons; tinham vários filhos. Outro era José Mulato e Felicidade. Essa era muito bonitinha, sempre limpinha, vinha nos falar tão sorridente. Mamãe a chamava de “La Rieuse”. Os filhos: Antonio, Rafael, Manoel e Miguel. Dava-se uma prosinha na frente da Coloninha, passávamos n’outro pulador e entrávamos no cafezal da Biquinha; ali era a nascente d’água muito clara; ao pé era o pé de limão bravo de onde se tirava as folhas para fazer o chá medicinal. Saíamos da Biquinha e íamos pelo carreador abeirando a cerca até a porteira do Tanque (Tanque chamam hoje “Lago”); entrávamos e abeirávamos o Tanque até chegar em casa . Levava 1 hora esse passeio; era só chegar e sentar no banco do terraço e esperar o cafezinho.

Chegava Papai sempre muito encalorado; pedia os chinelos. Ao escurecer chegava o empregado; nunca se teve administrador; era um fiscal ou ajudante. Durante anos foi o Marciano Casanova, mulato antigo escravo… Papai nunca fazia entrar nem sentar-se esses empregados. Ele tinha os serviços já tão certos e penso que já teria durante o dia corrido tudo que já estava a par; então aquela conversa era só para dar as ordens para o dia seguinte e fazia rápido. Se o café chegava na hora serviam uma xícara ao Fiscal que tomava ali mesmo em pé, dava boa noite e se retirava.

… Todos os anos íamos para São Paulo onde passávamos uns 2 meses. Morávamos na Rua Brigadeiro Tobias, bem em frente à Beneficência Portuguesa. Nos Domingos ouvíamos Missa ali na Capela da Beneficência. Era Missa curta, sala boa, não muito cheia. Via-se sempre ali o Barão de Piracicaba (tio Rafael) com 3 filhas, Eliza, Sofia e Tuda e o filho José que era ainda um rapazinho. O Barão de sobrecasaca e cartola, as filhas muito bem vestidinhas. A família de Dna Victoria Almeida Lima, dos Almeida Prado, dos Nicolau Vergueiro, Sr. Silvano Anhaia, Sr. Camilo Levy, Sr. Prof. Luiz Chiafarelli. Esse não era na Missa que eu via. O Prof. Chiafarelli morava bem em frente a nossa casa; ouvia-se piano o dia inteiro e Papai não gostava muito.

No ano de 1900 Papai comprou outra casa nessa mesma rua. Para isso fez negócio com o Sr. Eduardo Prates (mais tarde conde de Prates). Ouvi falar do negócio: Papai deu a casa na qual morávamos e mais 35 contos de réis. A casa estava muito estragada e teve que sofrer grandes reformas que custaram bem caro, mas não sei quanto. Ficou uma ótima casa onde meus Pais moraram uns 30 anos, mudando-se depois para Higienópolis. Em São Paulo Mamãe saia comigo e Vangila para visitar os parentes. Chamava um carro. Era um carro de praça, forma Vitória; custava 5 mil réis a hora e 3 mil réis a corrida. Mamãe tomava por hora. Os parentes primeiro a serem visitados eram tio João Batista e tia Sophia, tio Lulu e tia Anna Flora (os Barões de Mello e Oliveira), tia Júlia que já era viúva e morava com prima Sebastiana e Dr. Paula Machado, tia Mariquinhas (Baronesa de Piracicaba). Esses eram tios de Mamãe. Em casa do Vovô Justiniano e Vovó Gabriella íamos quase todos os dias.

Os parentes de Papai eram os Barões de Arary, os tios João Soares, Chico Soares, Juca Soares, prima Nicota Penteado, Ignácio Penteado, tio Joaquim Camargo. Ah! Esse era uma delícia. Tinham uma linda chácara na rua Vergueiro, dizia-se Villa Marianna. Era preciso ir de carro até a rua São Joaquim; ali tomava-se o trenzinho a vapor; uns 3 bondes abertos e logo chegava-se na Chácara Conceição; era tio Joaquim, tia Dasdores, tia Candinha, Julieta, Judith, Romeo, Olavo e Gilberto. Esse morreu pequeno. Nossas companheiras eram as duas meninas e Romeo. Olavo não gostava de brincar. Uma linda chácara e muito bem tratada; lindo arvoredo, muita flor, uma estufa cheia de begônias, avencas e parasitas. No fim da chácara tinha até vaca de leite, uns animais em lugar cercado e bem arrumado. Ali passávamos o dia. Acabada a temporada em São Paulo, Mamãe aprontava as malas e voltávamos para o Paraizo .

Na casa nova do Paraizo tinha tudo, mas os talheres de prata eram os mesmos que se usava em São Paulo e na fazenda. E também alguma roupa de cama e de mesa mais fina que era para quando recebia-se hospedes. Deixava-se em São Paulo uma boa caseira; era sempre um casal de confiança. O trem saia da estação da Luz às 5:20 h da manhã. De véspera seguiam as malas despachadas como bagagem e já se encomendava dois carros: Papai, Mamãe, a Professora e nós 4 e mais as malinhas e cestas de farnel! Paçoca, arroz, virado de galinha e outra galinha frita. Tudo arrumado em guardanapos, trouxinhas bem amarradinhas. Levava-se pratinho de louça e talheres. Não se usava pratos de papelão. Garrafas com água, copos. Tudo muito direito e farto. No trem nada havia para se comesse e eram muitas horas de viagem. Chegada a hora, Mamãe abria a cestas e as trouxinhas, arrumava em cada pratinho e ia dando a cada um com guardanapo e garfo.

… Descia-se na Estação de São Carlos e seguíamos de trolley para o Paraizo. Não me lembro em que ano, talvez em 1896, havia grande epidemia de febre amarela no Rio, em Santos, São Paulo e várias cidades do interior. São Carlos também tinha a tal da febre. Então Papai nos fez mudar de trem na estação Água Vermelha, que era um trem menor que passava na estação Babilônia e Floresta onde descíamos; já era nas terras do Paraizo e ali encontrávamos os trolleys da fazenda.

Nessa temporada em São Paulo os nossos passeios eram, de manhã, no jardim público da Luz. Íamos a pé com a professora. Levava-se pão para dar aos cisnes e aos veados, e nozes ou amêndoas para dar aos macacos. Eu gostava muito, achava divertido. Eu, Vangila e Loti; Bilú ainda era muito pequeno, ficava em casa. Outro passeio que eu gostava muito era com Papai e Mamãe e nós duas. Íamos a pé até a cidade, o triangulo, como diziam, subíamos a rua São João que era estreita e feia; no largo do Rosário (hoje praça Antonio Prado) tinha a igreja do Rosário. Virávamos pela rua São Bento até a rua Direita. Não havia a praça do Patriarca; o Viaduto do Chá desembocava já na rua Direita. Ali na esquina tinha a casa dos Barões de Três Rios e outras casas de sobrado, todas residenciais. Subia-se a rua Direita até a rua 15 de Novembro. Contavam-se que essa era antigamente a rua da Imperatriz, mas no meu tempo já era a 15 de Novembro. Íamos pela rua 15 até chegarmos no “Progredior”. Era uma sala grande onde havia mesinhas e muitos homens tomando cerveja. Atravessando a sala, ficávamos num terraço onde nos serviam sorvetes. Desse terraço tinha-se bonita vista para uma parte da cidade mais baixa e iluminada.

... Uma vez, nesse passeio, estava um homem na calçada ali na rua 15, convidando para entrar. Papai nos fez entrar, era só uma cortina na porta. Sentamos, filas de cadeiras, uma sala pequena. Via-se numa tela branca figuras se movendo. Chamavam lanterna mágica. Tudo só preto e branco, figuras muito simples e ingênuas; não tinha história. Na saída vendiam uns livrinhos moles que se fazia virar ou desfolhar segurando com o polegar. Nesses via-se também figuras se movendo. Papai comprou e nos deu; era uma menina pulando corda. Outro menino dando milhos às galinhas. Esse foi o começo do cinema. Para voltar para casa, tomava-se o bonde ali em frente ao Mercado que era onde é hoje o Correio. Bonde de burro; dois burros puxavam. Quando chegava numa subida, havia ali um homem e um burro. Mesmo sem o bonde parar, o homem atirava a rédea ao cocheiro e enganchava a balancinha do burro no bonde. Terminada a subida havia outro homem que retirava a tal balancinha e pegava a rédea que o cocheiro atirava. Esses homens não usavam uniformes e sempre de chapéu na cabeça; os cobradores tinham boné e andavam no estribo dos bondes. Depois do ano de 1900, ou pouco antes, apareceram bondes elétricos, grandes, bonitos, mas os cobradores ainda andavam pelo estribo. Pagava-se 200 réis e nos dias de muita gente esse bonde puxava um pequenino onde pagava-se só 100 réis; eram chamados os “caraduras”. Creio que aproveitavam para isso os bondinhos de burro.

De tarde era costume ficar na janela tomando a fresca e vendo gente passar. A família toda ali proseando.

… Voltemos a relembrar a vida calma e boa do Paraizo. Papai falava em aumentar os cafezais pois que, atravessando a estrada de ferro tinha a mata e terras muito boas. Levaram a derrubar essa mata, deixaram secar e, quando menos esperávamos, Papai nos disse que ia fazer a queimada, ia por fogo na derrubada. Mamãe ficava muito cuidadosa. Essas terras ficavam muito longe, talvez alguns quilômetros distantes mas bem em frente a casa do Paraizo. Vimos todo o fogo. Um espetáculo bonito mas selvagem e assustador. Subiam aquelas labaredas fazendo como um caracol no ar, muita fumaça e deslocava o ar provocando forte vento. Papai tinha mandado fazer aceiros de todos os lados para defender a nossa mata vizinha e outra fazenda. Só a tardinha Papai chegou em casa, muito cansado, tendo deixado lá na queimada uns homens de confiança para vigiarem caso o fogo passasse para o vizinho. E a noite foi lindo de se ver: todo aquele chão era um braseiro só. Aqui e ali levantava uma labareda; de outro lado com o vento eram faíscas que subiam para o céu. Estávamos achando muito lindo mas quando Papai nos contou que estava triste pois o Maroto tinha sumido e provavelmente se meteu na roçada atrás dos preás e das lebres e teria morrido queimado. O Maroto! Um cachorro vira-lata mas tão bonzinho! Nos acompanhava nos passeios, era amarelo com listas pretas, talvez mestiço de perdigueiro e por isso só queria caçar. Pobre Maroto! Papai disse: “eu devia ter mandado prende-lo aqui pois era certo que ia correr atrás dos preás e das lebres”. Acabou-se o nosso Maroto. Esse ano Papai disse que ia plantar milho e abóbora na roçada e que ia alinhar para plantar café. Já havia guardado algum café cereja para essa plantação. Para alinhar o café Papai arranjou uma cordinha bem comprida e, de espaço em espaço, amarrava nessa cordinha um pedaço de baeta vermelha. Mamãe já havia cortado as tiras bem iguais e penso que eram colocadas na cordinha, com 18 palmos de distancia uma da outra e ali amarradas. Diziam plantar café a 18 palmos, outros preferiam a 18 palmos para ficarem as árvores mais juntas e assim menos chão para carpir pois na sombra da árvore o mato crescia menos. Mas ali a terra era nova e muito fértil; as árvores ficaram enormes e não era praguejado. Como não havia geada no município de São Carlos, uma cafezal de 3 anos já produzia café, Naquela mesma roçada, com aquela quantidade de paus, árvores e galhos que escaparam do fogo, cortava-se pauzinhos, todos do mesmo tamanho, penso que uns 40 centímetros, dizia-se 2 palmos, e com esse pauzinho cobria-se cada cova onde se havia posto 6 grãos de café cereja, já murchinhos, quase secos. Essa cova devia ter 2 palmos quadrados e 1 palmo de fundo. Penso que não levava 3 meses apareciam umas folhas redondas que diziam “orelha de onça” e algum tempo mais apareciam 2 folhinhas pontudas e diziam “está cruzando”. Então já era necessário abrir um pouco mais o tapume tirando os paus e pondo 2 em um sentido, 2 em outro sentido atravessado.