segunda-feira, 26 de julho de 2010

Discurso de Roberto Figueiredo Mello na cerimônia dos 150 anos


São Carlos, 24 de Julho de 2010

Para Carmem, José, Luly, José Roberto, Toty e Sérgio

Família, Amigos;

Confesso que vivi estes últimos dias tomado por um sentimento, que para mim não é comum, de incapacidade de enfrentar este momento.

Tendo acompanhado o trabalho de minha mulher, Neta, e sua dedicação em resgatar a história da Fazenda Paraizo durante o último ano, senti que era preciso vencer esse desafio apesar da dor ainda tão viva da perda de minha mãe, Toty.

Afinal foi ela quem nos legou essa história.

Sei também que ela gostaria muito de ouvir o que será contado em seguida.

Sempre tivemos no horizonte a hipótese, infelizmente concretizada, de que ela pudesse não estar presente, fisicamente, nesta data tão importante.

Sim, eu disse fisicamente.

Pois foi exatamente essa a circunstância que me fez prestar atenção na profundidade que tem a crença tão comum de que as pessoas podem se fazer presentes em espírito.

Recorrendo ao significado da palavra tradição podemos entender melhor que não só ela e o João Paranaguá que há tão pouco nos deixaram, mas também outras centenas de pessoas que nos antecederam, estão aqui presentes hoje.

Traditio, tradere, do latim, palavra familiar aos estudantes de Direito tem como significado - Entrega.

Em grego, na acepção religiosa, paradosis, ou a transmissão de práticas, valores e crenças de geração em geração, advinda da necessidade diante da certeza de que o homem é mortal.

Estamos, portanto, diante desses fatos.

A atual geração é legatária dessa entrega, traditio, tradição, que recebemos e continuamos a receber, da geração que nos antecede.

Nosso vínculo com estas terras está impregnado das histórias que ouvimos ao longo da vida, das que vivemos, e das novas histórias que estamos entregando para nossos filhos.

Não são somente os laços de sangue que nos ligam à Fazenda Paraizo.

Talvez seja mais forte que o sangue, a tradição oral, que foi forte o suficiente para, até aqui, nos fazer capazes de manter e amar este pedaço de terra.

Vou recorrer a pequenos trechos extraídos dos depoimentos que foram dados e que fazem parte do blog da Fazenda Paraizo.

O mais antigo desses depoimentos é o de tia Zila, irmã de meu avô Asdrúbal e que faz parte de um livreto chamado “Dias ensolarados no Paraizo”.

No Paraizo as conversas de casa nova continuavam. Mamãe nos ensinou a ler, escrever, contar e a Geografia; o que eu me lembro, mamãe ensinava muito bem. Nos mostrava no Mapa. Sabíamos “na ponta da língua” como se dizia, as 5 partes do Mundo, mares, países, rios, lagos, montanhas, cidades. Nos mudamos para a casa nova no ano de 1897. Então tivemos a primeira Professora. Senhora alemã, Fraulein Walsman. Nos ensinava português, francês, aritmética, geografia, historia Santa, piano e ainda trabalho com a agulha. Essa senhora era tratada por meus Pais com toda consideração e bondade; ganhava quatro contos por ano, livres, viagens, passadio, tudo por conta de Papai. Tinha um bom quarto, uma sala para dar as aulas e um terraço com bonita vista. Algumas vezes estávamos em aula e ouvíamos os gansos do lago em grande agitação e cantoria. Pedíamos licença para a Fraulein e íamos olhar na janela; era quase sempre uma visita que chegava de trolley ou algum passante como o Sr. Joaquim Alves; esse vizinho tinha licença para passar pela nossa fazenda para encurtar o caminho.”

Do precioso depoimento de João Paranaguá:

“Quando nos envolverem

As sombras do crepúsculo

Sentiremos a saudade

Das folhas que não tombaram

E não abrigaremos mais

As emoções dos tempos idos,

E tudo será simples como

O cair das sementes sobre a terra.”

O poema acima foi escrito por João Alfredo Paranaguá Moniz e está no livro “Aurora” publicado em 2006. Não foi escrito sobre a Fazenda Paraizo, mas as “folhas que não tombaram” e “o cair das sementes sobre a terra” podem ter ficado em suas lembranças dos tempos de férias na fazenda e dos pouco mais de três anos que morou e trabalhou na fazenda”

De minha mãe, Toty, um trecho que mescla a Fazenda com a revolução constitucionalista, da qual os velhos paulistanos tanto se orgulham.

“Nasci no dia 11 de setembro de 1924. A casa, para um casal sem filhos, teve que ser aumentada! Dois anos depois, nasceu Luly. A Revolução de 1924 foi um pouco antes do meu nascimento. Tia Marocas estava esperando o filho Paulo que nasceu no dia 9 de julho de 1924. Muita gente fugiu para as fazendas, mas como nasci em setembro, papai e mamãe acharam melhor ficar em São Paulo. Tio Theo e Tia Marocas foram para nossa casa na Rua Bahia, já tinham a Heloisa, a filha mais velha. A cidade foi bombardeada em muitos lugares e papai e tio Theo saíam para comprar comida. Isso eu me lembro de mamãe contar, foi meses antes do meu nascimento.

Na Revolução de 1932 – a Constitucionalista – eu me lembro perfeitamente de papai fardado partindo como Major. Como ele era engenheiro, foi mandado para Espírito Santo do Pinhal como estrategista, fazendo mapas, não sei dizer bem o que mais ele fazia. Temos cartas e telegramas que Luly guardou. Levaram burros e cavalos do Paraizo para as tropas paulistas. O Augusto (Tuto) de Maria Flora, que também era engenheiro, chamou papai a vida inteira de Major, era engenheiro também, mas estava abaixo de papai no pelotão. Tio Bilú também foi lutar, não me lembro onde. Todos os paulistas em idade para lutar, lutaram em 32. Nós ficamos na fazenda durante a revolução. Me lembro de papai voltar muito barbudo, tinha uma barba fechada e de farda verde. “

Tia Luly, sempre romântica, e sua enorme afeição por essas terras, afeição cuja dimensão, temos que reconhecer, foi herdada por minha prima Beatriz, aliás, como minha tia diz em seu depoimento.

Conta Tia Luly,

“Eu adorava cavalos. Comecei com o Periquito, depois tive o Rex e, aos dezoito anos pedi como presente um manga larga: ganhei o Tangará.

Mamãe, que nada tinha a ver com culinária em São Paulo, na fazenda virava doceira, boleira, fazia pães e sequilhos pelas velhas receitas de família. Era muito usado se trocar receitas: bolos de dona Alaíde; pão de vovó Eliza; creme de vovó Júlia e por aí afora. Os nomes ficaram...

Meninotas românticas, no inverno, a graça era deitar nos montes de café e ver, naquelas mágicas noites de estrela, as estrelas caírem. Podia-se fazer um pedido, mas não se podia contar que tinha visto a estrela cair.”

Tia Carmen nos conta uma história mais recente e nova.

Uma história de 56 anos..........

1954. Foi quando começou minha nova vida no Paraizo com José Franco de Lacerda: namoro, noivado, casamento, e eis que estou de mudança para a Fazenda!! O que o amor faz acontecer...

Um enorme casarão de dois andares, jardim, horta, pomar, tudo por minha conta!

Aos poucos a rotina foi sendo feita e o dia a dia acontecendo: na cozinha, Honorata com suas panelas debaixo da pia, me fazia medo: na lavanderia, Rosária e sua filha Fátima (ou Famita assim chamada pelas minhas filhas, pois trocava as letras: laspi = lápis, mânica = máquina) era encarregada da roupa e dos quartos. No jardim, meu fiel escudeiro Alécio Vigatti, mantendo sempre varridos os caminhos, os pátios, os canteiros sempre floridos e o pomar com todas as frutas possíveis, para tapar a boca dos vizinhos!! Havia também uma figura singular, o velho Mané –, filho da escrava Felicidade, nascido de Ventre Livre com seu cachorro Japi, perambulando pelo jardim feito uma alma penada, bufando e resmungando.

Foi assim, percorrendo essas histórias e tantas outras que não foram escritas, mas contadas, que eu, aos poucos, fui me convencendo que deveria aceitar o pedido da Bê e falar nesta linda festa.

Antes de encerrar vou usar o trecho final do meu próprio depoimento para dizer alguma coisa para as próximas gerações e falar da nossa compreensão para o que possa vir adiante:

“Entre nós primos, volta e meia comentamos que talvez seja impossível manter indivisas as três glebas do Paraizo original por muito mais tempo. Afinal são 30 herdeiros nesta nova geração e a cidade quase chegou até a Fazenda.

Aos 61 anos acho que aprendi que é impossível operar sobre o futuro. Será como puder ser.

Vamos aproveitar, porém, o privilégio de sermos protagonistas de uma história de 150 anos. Fazendas mais velhas há, e muitas, no Brasil. Na mesma família certamente poucas, muito poucas.”

A festa de hoje é resultado da cooperação dos dez primos desta geração da qual eu sou o mais velho.

Foi mais uma conquista ditada pelas relações de amizade e harmonia que nossos pais nos legaram.

Nada, porém, teria acontecido não fossem a dedicação, o empenho e o amor da Beatriz, pelo Paraizo, sentimentos plenamente compartilhados pelo Durval e pelos filhos.

Roberto

P S: Além dos depoimentos mencionados, existem os da Beatriz e da Elisa e do Antonio Gallo, o Toninho, no Blog da Fazenda Paraizo resultado de um trabalho da Neta que eu testemunhei de perto.

Para os que gostarem de história seu conteúdo é maravilhoso..........

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