domingo, 8 de novembro de 2009

Depoimento de Luly - Maria Lucia Lacerda Coelho de Paula







Fernando Coelho de Paula
Marcelo Coelho de Paula
Luly montada no Chiquinho

“Paraizo, o que foi o meu Paraizo? Férias, que emoção. Passar tempo no casarão, que alegria. Ver árvores, plantações, um luar, uma cachoeira chamada Buracão, onde tinha carrapatos e uma imensa emoção como se estivéssemos fazendo um safári na África.

Mamãe me trouxe para cá a primeira vez com seis meses. Eu sempre brinco que eu não sou nem sãocarlense nem paulista.

As jabuticabeiras que se enchiam de frutas. Eu era chamada para encher as cestas que eram mandadas pelo trem para os amigos paulistanos: jabuticaba era um fruto que nos deliciava. Era uma razão para convidar amigos, era a fruta das fazendas paulistas.

Papai, de polainas e chapéu, ia ver o serviço da fazenda a cavalo e eu ia com ele do casarão até o Alto do Jabaquara onde ainda tinha café. Foi cortado quando o vovô Cândido cedeu aquela área para nosso primo muito querido por nós, especialmente por meu pai, Caio Paranaguá Moniz, filho de tia Evangelina e tio Alfredo.

Papai e mamãe não tiveram filhos durante os dez primeiros anos de casamento, então o Caio, filho de Tia Vangila era queridíssimo deles, assim como todos esses sobrinhos. O Caio e o Jica eram mesmo muito queridos deles. Caio foi trabalhar no Paraizo para plantar algodão.

Nessa época começou a erradicação dos cafés, foi para nós uma novidade ver o algodão crescer no Alto do Jabaquara. [1939 mais ou menos].

Abrindo um parênteses. A família de Tia Vangila teve uma vida com muitas restrições porque o tio Alfredo ficou paralítico muito jovem. O Caio contava que manteiga eles só comiam no domingo. O começo da vida da tia Vangila com o tio Alfredo foi bastante difícil também porque ele ficava muito enciumado: desmanchava toda a bainha dos vestidos dela para ela não poder sair no Rio de Janeiro. Morria de ciúmes, ela era uma mulher linda!

Tão rica terra, chegou a produzir noventa capulhos [botão do algodão] por pé. E ainda era tão manual quanto o resto do serviço.

Tempos depois, Tio Théo convidou o Caio para trabalhar em Cruzeiro, onde meu pai trabalhava como sócio também. Tio Théo comprou com meu pai o Frigorífico Cruzeiro. Aí o Caio e Lucy, mulher dele, foram morar lá. E papai sempre dizia a Caio que o começo do dinheiro dele foi o algodão plantado no Paraizo, que rendeu a ele uns bons cobres, não sei exatamente quanto.

Primeiro ele foi como ajudante do tio Théo, eventualmente comprou a parte do papai.

De volta à lida no Paraizo. Quando colhido o café ele era trazido para os terreiros em carroças. E na infância, ainda bem pequenas, nosso prazer era ver soltar os burros que puxavam as carroças que, quando livres da cangalha, se espreguiçavam na terra e levantavam um poeirão.

Saíamos em grupos a cavalo, no começo acompanhados por um serviçal [Gumercindo], depois só nós – irmãos, primos e amigos.

Eu adorava cavalos. Comecei com o Periquito, depois tive o Rex e, aos dezoito anos pedi como presente um mangalarga: ganhei o Tangará.

Mamãe, que nada tinha a ver com culinária em São Paulo, na fazenda virava doceira, boleira, fazia pães e sequilhos pelas velhas receitas de família. Era muito usado se trocar receitas: bolos de dona Alaíde; pão de vovó Eliza; creme de vovó Júlia e por aí afora. Os nomes ficaram...

Meninotas românticas, no inverno, a graça era deitar nos montes de café e ver, naquelas mágicas noites de estrela, as estrelas caírem. Podia-se fazer um pedido, mas não se podia contar que tinha visto a estrela cair.

A volta para São Paulo não me agradava muito. Sempre fui muito ligada ao verde, ao espaço. Me lembro das frias madrugadas em que o Miranda, motorista de São Carlos e, às vezes, mais um táxi – vinham nos buscas. A estrela Vésper ainda estava no céu; nunca me esqueço destas viagens de trem; que maravilha! Em geral vínhamos e voltávamos de trem da Ferrovia Paulista porque a viagem era muito penosa – eram nove horas!

Se eu continuar a pensar, escrevo um livro. Por isso, vou parar e agradecer a Deus que exista gente como a Batoca e o Durval que com muita coragem e amor são os continuadores de seu pai, meu irmão José e mais 5 gerações.

Quando vovó Eliza morreu, deixou para cada um dos afilhados, 100 contos de réis [dinheiro de 1942], se não me engano. Ela era minha madrinha. Foram gastos: parte comprando um pedaço da Santa Cruz porque eu amava a terra. Papai até me perguntou se eu tinha certeza. Fiz uma viagem com Tio Théo para os Estados Unidos, ainda com esse dinheiro e guardei alguma coisa. Fiz uma viagem com a tia Lucy para Buenos Aires. Acho que eu gastei praticamente todo o meu dinheiro nisso.

A Fazenda Santa Cruz não era nossa. Era um pedacinho que ficava “encravado” na Paraizo. O dono queria vender e papai achou interessante comprar para acrescentar aquela área ao Paraizo. Só que papai não tinha aquele dinheiro todo. E os irmãos, a essa altura, queriam todos vender a fazenda, isso sim.

Eu comprei um terço da Santa Cruz, que com o correr dos anos ficou como uma parte da Paraizo. Aí o José me propôs trocar o terreno de mamãe em São Paulo, que é vizinho de casa até hoje.

Falando sobre os tempos de criança, eu me lembro que Mamãe se dava muito bem com a vovó Elisa e com a tia Brasília. Ela morou um tempo com a tia Brasília.

Papai construiu a casa da sede no Jaú e mamãe morou um tempo lá. A fazenda se chama Santo Antônio, eu acho. A fazendo ficou com algum dos filhos do Jica. – era era o filho mais velho da tia Zila. Antônio Carlos.

José Roberto Coelho de Paula assistiu ao depoimento de Luly. São casados há quase sessenta anos. Contou o que viveram lá:

Minha primeira visita ao Paraizo tem mais de 60 anos, quando éramos noivos. Depois de casados, Sérgio e Toty também iam para a fazenda com o Roberto, o filho mais velho. No mesmo ano nasceram o Fernando, de Luly e o Carlos de Toty. Em 1951. Tivemos mais quatro meninos – Marcelo, Asdrúbal, Eduardo e Luiz Roberto. Sérgio e Toty tiveram o terceiro, Luiz. Oito netos homens! Claro que toda a turma queria passar as férias no Paraizo. O casarão tinha só um banheiro embaixo para todos!

Quando José e Carmem se casaram e foram morar na fazenda, logo nasceram Elisa e Beatriz. E a casa não comportava tanta gente nas férias. Passamos a revezar – Toty e os filhos passavam uma temporada, eu e meus filhos, outra.

Pedi a José que se vagasse uma casa na colônia, nós faríamos uma pequena reforma para termos um canto nosso. Livraram duas geminadas.

Fizemos uma reforma bem precária com o único dinheiro que Toty e eu recebemos da Paraizo ao longo dos anos. Nós aplicamos na reforma da casa que não tinha banheiro, não tinha nada. A cozinha era do lado de fora. Nós não tínhamos para investir: era começo de vida, criançada pequena, uma luta.

Nós ficamos nessa casa para que Carmem e Toty pudessem ficar à vontade no casarão. Assim ficavam cinco crianças e não dez! Tinha uma cachoeirinha na frente da nossa casa, que a gente ia buscar água. Pegava a estrada, entrava no pasto e do pasto, o riozinho que saía do lago e lá tinha essa mina d’ água. Era uma cachoeirinha muito lindinha.

E foi assim, tarde calma, José, meu irmão, e eu resolvemos dar uma volta no pomar do velho e querido casarão do Paraizo, em direção a picada do mato, que confinava com o pomar. Caminho aberto no meio da mata. Era como se estivéssemos adentrando um pedaço de selva.

De repente José disse: Vamos vender essa fazenda, só dá trabalho, estou cansado.

E eu, para quem aquele pedaço de terra era muito especial disse: mas José isso é nosso, porque cada um de nós não assume a sua parte sem onerar a mamãe nas rendas devidas. Faríamos esse compromisso. Éramos todos moços o bastante para criar uma fazenda.

Foi assim que surgiu a idéia da partilha, tirando do José uma responsabilidade cansativa. Assim que nos reunimos e discutimos como seria essa divisão, Toty e Sérgio bem como nós dois achávamos que a sede que tinha sido mantida por José e Carmem Sylvia até aquele momento com carinho deveria ficar no pedaço deles. Esse casarão foi construído por Candido e Eliza, meus avôs em 1897.

Asdrúbal e Beatriz, meus pais, sempre tiveram com essa sede o mesmo carinho que meu irmão. Para nós, era uma alegria as férias na fazenda, não queríamos outro lugar, às vezes íamos a sós às vezes levávamos amigos. Quase sempre íamos pelo trem da Paulista que era uma maravilha e algumas outras de carro, o que representava muito boa disposição de meu pai, pois o carro às vezes quebrava e ele é quem tinha que consertar tudo, pois não havia o menor socorro nas estradas. Era tudo muito primário.

Da parte de mamãe sempre havia um farnel, pois as viagens chegavam a durar até 9h. Era uma farra sentar embaixo de uma árvore e fazer um piquenique, apesar dos percalços nunca houve mau humor nessas viagens.

Sempre gostei do Jabaquara, a área que nos coube na partilha.

A gleba do Paraizo era um grande retângulo, onde num dos extremos ficava a sede e o lado oposto a isso era o Jabaquara. Era muito comum eu ir com meu pai á cavalo pelo carreador central da sede até o alto do Jabaquara. Vestia-me sempre de calças de montaria e botas até o joelho, pois muitas vezes tínhamos que andar em campineiras onde havia o perigo das cobras. Mouro e Periquito eram os cavalos mais velhos e que nós usávamos, depois foram comprados Pipoca, Rex e outros que usávamos quase todos os dias. O Tangará ganhei de meus pais como presente dos 18 anos, foi comprado de uma fazenda de um amigo de meu pai que ficava em Laranjal.

Prontinha com o chapéu na cabeça e o rebenque na mão lá ia eu com o Zão, era como chamávamos nosso paizão, era passeio e trabalho, pois era durante essa caminhada que meu pai ia vendo o serviço e dando as ordens quando necessário. Saíamos cedo e voltávamos na hora do almoço, às vezes sob um sol escaldante e às vezes um gelo.

Quando papai assumiu a fazenda, grande parte era de cafezais que já velhos, mas ainda produtivos. Na baixada da várzea que era chamada de Japão, pois lá havíamos tido arrendatários imigrantes japoneses que não falavam português e tinham hábitos muito singelos. Construíram suas próprias casas de sapé e bambu em chão de terra batida e cultivavam uma boa área de arroz. Era uma gente muito arredia, nunca entramos em nenhuma das casas.

Passando a várzea começava o café, todo o lado direito até o alto do Jabaquara e do lado esquerdo havia a mata virgem que nunca foi cortada, 40 alqueires. A nossa divisão Jabaquara Paraizo era o ribeirão dos Negros. Que cortava a várzea em direção a represa do 29. Atravessando a Fazenda Morro Alto nossa vizinha e também algumas terras do Canchim. Uma vez feita a partilha cada um de nós começou a construir a sua fazenda.

Toty e Sérgio construíram na Santa Cruz uma casa pequena, já planejada para crescer. A fazenda dela confinava com o Paraizo e conosco num trecho onde havia uma estrada de ferro de bitola estreita da companhia Paulista. Com o Paraizo a divisa era feita com o córrego do Paraizo que despencava num salto até as terras baixas para se encontrar com o Ribeirão dos Negros. Foi um tempo muito bom em que nós, Zé Roberto e eu planejávamos e construíamos nossa fazenda. Não havia nada no Jabaquara, nem tulhas, nem terreiros, nem casa de empregados, nem luz, nem água encanada e nem telefone, começamos do zero.

Havia alguma plantação de café que nós mantivemos, plantamos uma nova área com café, tínhamos uma área de milho e outra de pasto. Foi conosco como administrador Jaime Mion filho do muito antigo administrador do Paraizo, era bem mocinho, eficiente e trabalhador. Só que como perfeição na existe, ele se arvorou em sócio do material que mandávamos para construir nossa fazenda, mas isso só foi percebido tempos depois. Construímos uma boa casa que imaginávamos um dia transformar em moradia do administrador, escritório e depósito. Construímos também a colônia, cinco casinhas feitas com capricho e com o mesmo material que usamos na nossa casa. Uma bela área no entorna das casas, tudo na mais perfeita ordem. Refizemos a tulha que estava caindo e fizemos o nosso próprio terreiro. Tudo era prazer.

O entusiasmo de Zé Roberto e meu era enorme em ver a casa crescer. Tínhamos dois pedreiros, Pedro Gandolphini e Angelim Ferrarini, ótimos, e um servente uma pessoa muito educada e inteligente e diferenciada Geraldo de Melo cujo filho foi mais tarde trabalhar na Santa Cruz e ficou como administrador até hoje na fazenda de Toty e Sérgio - o Antônio.

Chegava sexta-feira à noite. Era por a criançada no carro, mais gatos e papagaios e ir para o Jabaquara, que maravilha! Luz, água, telefone, estradas e cercas, tudo foi feito por nós,antes não havia nada, fizemos ainda um curral e uma estrebaria.

No Jabaquara tinha um salto e a água provinha de uma matinha cheia de palmitos, era um lugar encantador. Fazíamos divisa com uma estrada municipal entre nós e o Otavio Pinho. Do outro lado com a Fazenda Morro Alto e do outro lado com a Fazenda Sapé.

Uma área plana que havia no Jabaquara foi emprestada por meu avô Candido á seu neto, Caio Paranaguá Moniz que lá plantou algodão com enorme sucesso.

Caio também plantou eucaliptos em volta de toda essa área o que a deixou muito bonita. Esse primo era muito amigo e foi convidado por tio Teodoro para gerenciar um frigorífico que eles compraram em Cruzeiro.

Essa divisão feita por nós só nos deu alegria, nossos filhos cresceram nessa terra e sendo um grupo muito amigo, as férias eram uma farra. Nem se pensava em rádio ou televisão, tínhamos mais tempo para ler e pensar. Gozar das coisas mais pelas e simples da natureza sempre foi o nosso prazer.

O Jabaquara passou para as mãos do Asdrúbal quando ele voltou formado de Piracicaba como Engenheiro Agrônomo e aí surgiu a possibilidade da compra de uma fazenda vizinha chamada Floresta e assim continuou a nossa vida de reformadores de Fazendas. A Floresta tinha uma sede de 1880 que estava semi-abandonada e mais 80 alqueires de terra, duas cachoeiras.Era uma gleba linda e foi um prazer reforma-la durante 30 anos.


quarta-feira, 4 de novembro de 2009

mais fotografias

Luly e Toty - anos 40 - terraço sala de jantar do Paraizo
Luly, José, Beatriz e Toty no Jahu
Cândido e Elisa no Jahu
Asdrubal e Toty - anos 40
Bilú, Vangila e Asdrubal - 1912

Neia e Vovô Cândido