terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Fazenda Paraíso – São Carlos – 150 anos de história


mapa da região de São Carlos - a fazenda Paraizo aparece com o nome Fazenda Lacerda (para ver detalhes, clique no mapa)
casa das máquinas e pontilhão dos vagonetes
sala da lareira
parede de taipa da tulha - Fotografias de Paulo Pires


Fazenda Paraíso – São Carlos – 150 anos de história

Profa. Dra. Maria Ângela P. C. S. Bortolucci

mariacsb@sc.usp.br

Departamento de Arquitetura e Urbanismo – EESC/USP


A fazenda Paraíso está localizada no município de São Carlos, distando poucos quilômetros da cidade. Aparece no mapa da Comissão Geographica e Geológica do Estado de São Paulo – folha Rincão, de 1926, com o nome de fazenda Lacerda, mostrando a projeção de três construções no conjunto da sede e, bem próxima a este, a projeção de mais quatro construções em fila que, certamente, seria uma colônia (Comissão, 1926). Todo este conjunto está a pouca distância da Estação Floresta, à margem do ribeirão dos Negros, do ramal de Água Vermelha da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, que ligava São Carlos a Santa Eudóxia, num trajeto sinuoso por exigência da topografia e da necessidade de atender aos fazendeiros importantes da região. Suas terras, no início da ocupação, nos primeiros anos do século XIX, faziam parte da sesmaria do Quilombo, constituída pelo vigário de Piracicaba Manoel Joaquim do Amaral Gurgel que, já em 1812, vende-a juntamente com as benfeitorias realizadas. Em poucas décadas esta gleba troca várias vezes de proprietários, levando ao parcelamento e à formação de várias fazendas, cujos proprietários foram os responsáveis pelo rápido crescimento e ocupação desta porção do território paulista. Foi nesta onda pioneira que os Lacerda chegaram, há precisamente 150 anos, e se instalaram na região.

No Almanak da Província de São Paulo para 1873, na parte dedicada ao Município de São Carlos do Pinhal (LUNÉ, 1873, p.539-542), encontramos o nome de Antonio Franco de Camargo Lacerda & Irmão, na lista das 55 propriedades dedicadas ao plantio de café. Vale destacar que, além destes fazendeiros, o almanaque também inclui uma lista de 10 fazendeiros de cana de açúcar, que seriam as duas principais culturas do município naquela época. Este dado confirma o engajamento dos Lacerda na principal atividade econômica – o plantio de café – que estava em plena expansão na região naquele momento, mesmo antes da chegada da ferrovia em 1884.

O Almanaque de 1893, na seção que apresenta a “Divisão do Município em Quarteirões”, entre outras propriedades, é mencionada a fazenda de “Lacerda & Irmão”, localizada no 23º Quarteirão denominado Bairro do Monjolinho (AUGUSTO, 1894, p.20). Esta propriedade aparece novamente no mesmo almanaque, na relação dos “lavradores” (AUGUSTO, 1894, p.144). No Almanach de São Carlos para 1915 e no Almanach-Album de São Carlos 1916-1917, na relação dos fazendeiros do município de São Carlos, já consta o nome de Candido Franco de Lacerda relacionado ao “immovel” Paraíso, localizado no bairro Floresta, com uma plantação de 350 mil cafeeiros. E no Almanach Annuario de São Carlos de 1928, Candido Franco de Lacerda está incluído na relação dos fazendeiros com uma produção ampliada para 355 mil pés de café.

As instalações remanescentes que formam a atual fazenda Paraíso, apesar das alterações, ampliações e perdas, estão impregnadas das marcas de seu passado. São testemunhos materiais das histórias, das crenças e do cotidiano das gerações que habitaram cada pedaço, cada canto, destas edificações: o casarão, as tulhas, o terreiro... O casarão (erguido no final do século XIX em substituição ao antigo, demolido em 1897) é certamente o melhor exemplo desta capacidade de adaptação para se ajustar a novas necessidades e, talvez, seja por esta razão que conseguiu sobreviver até os tempos de hoje. Preserva-se a matéria, na mesma proporção que detém um valor familiar inestimável, alimentado pelas emoções e sentimentos de todos que por ali passaram. Há neste lugar uma aura de especial encantamento que tanto nos impressionou e que foi maravilhosamente captada pelas lentes do fotógrafo Paulo Pires que nos acompanhou em nossas visitas, em 1987, para realizar levantamentos que incluíam uma seqüência de fotografias dos espaços internos e externos das edificações, de detalhes construtivos, da paisagem etc.. Naquela ocasião estávamos iniciando nossos estudos sobre a arquitetura rural e urbana, os modos de vida, do século XIX e das primeiras décadas do século XX no interior paulista (posteriormente, foram realizados estudos mais ampliados deste patrimônio rural dos “Campos de Araraquara” por Benincasa e publicados em 2003). Fomos muito gentilmente recebidos pelo senhor José Lacerda, o proprietário da fazenda naquela época, que abriu as portas de sua casa para que fizéssemos nossos registros. Vale lembrar que ele se impressionou particularmente com as fotografias do senhor Paulo Pires a ponto de solicitar uma seqüência exclusiva.

É verdade que este conjunto de fotografias atesta o hibridismo de influências de gosto e de técnicas construtivas que foi uma das características do século XIX nesta região. A tradição mineira de construir, executada pelos escravos, presente nas edificações mais antigas convive com o saber fazer dos imigrantes estrangeiros. Nestas construções percebemos o intensivo uso da madeira, seja nas esquadrias, nos pisos ou nas estruturas dos telhados. O barro é matéria prima essencial, sempre, mas, o tijolo passa a prevalecer sobre a taipa. Foi rápida a assimilação das novidades por esta sociedade que se enriqueceu com o dinheiro do café e pode trazer todo tipo de modernização para seu cotidiano, tanto para produção de café, como para dentro do lar e para as áreas adjacentes à casa do fazendeiro (jardins, pomares, hortas etc.), compondo lugares inesquecíveis que foram tantas vezes objeto de relatos minuciosos dos antigos viajantes. Os autores Benincasa (2003) e Maluf (1995) incluem, em suas respectivas publicações, valiosas informações da fazenda Paraíso, oferecendo ricos detalhes de seu cotidiano, no final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, através dos diários de Brazilia Oliveira Franco de Lacerda, filha de Elisa e Candido Franco de Lacerda. Vale destacar que a capa do livro de Benincasa é uma bela imagem dos jardins da fazenda Paraíso. De fato, este patrimônio rural é dotado de lugares paradisíacos e a fazenda Paraíso, sem dúvida, é um deles, fazendo jus ao nome que lhe foi dado. Graças aos cuidados da família Lacerda, que se mantém sua proprietária até os dias de hoje, esta fazenda alcança seus 150 anos de idade preservando-se com graça e elegância.

São Carlos, 06 de dezembro de 2009


Referências

BENINCASA, Vladimir Velhas Fazendas: arquitetura e cotidiano nos Campos da Araraquara. São Carlos, EdUFSCar; São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

CAMARGO, José Ferraz ed Almanach Annuario de São Carlos de 1928. São Carlos, 1928.

AUGUSTO, Joaquim ed Almanach de São Carlos. São Carlos, O Popular, 1894.

CAMARGO, Sebastião org Almanach de São Carlos para 1915. São Carlos, Typographia Joaquim Augusto, 1915.

CASTRO, Franklin org Almanach-Album de São Carlos 1916-1917. São Carlos, Typographia Artística, 1916-1917.

Comissão Geographica e Geológica do Estado de São Paulo – Folha Rincão, 1926 (mapa escala 1:100.000).

LUNÉ, Antônio José Batista de Almanak da Província de São Paulo para 1873. São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1985.

MALUF, Marina Ruídos da Memória. São Paulo, Siciliano, 1995.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mais fotografias...

Bodas de ouro Vovô Cândido e Vovó Elisa - 14 de julho de 1935

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Depoimento de Toty - Maria Beatriz Lacerda de Figueiredo Mello

Toty e Luly com a mãe Beatriz

Toty - 1925

Luly, Asdrúbal e Toty




Sérgio Figueiredo Mello, Toty e os filhos Roberto (dir.) e Carlos




Aos treze anos, Vovô Candido estava estudando na Alemanha, não sei em que cidade e recebeu a notícia da morte da mãe. O pai mandou buscar vovô Candido para tomar conta das terras que ficaram para os filhos como legítima da mãe, Clara. Isso foi o início do Paraizo. Eram mais ou menos quatrocentos alqueires. Ele desbravou as terras e plantou café – mais de 400 mil pés! Depois papai comprou mais um pouquinho.

O pai de Vovô Cândido, José Lacerda Guimarães, era o Barão de Arary. Ele se casou primeiro com Clara Franco de Camargo que teve doze filhos, entre eles Cândido. Depois da morte de Clara, o barão se casou com Maria Dalmácia de Lacerda Guimarães que teve cinco filhos. O Barão de Arary teve dezessete filhos!

Cândido Franco de Lacerda nasceu em 16 de agosto de 1857 em Araras e faleceu em São Paulo em 1944. Casou-se com Elisa Whitaker de Oliveira Lacerda. Elisa nasceu em 5 de dezembro ---- e faleceu em 8 de julho de 1946.

Vovô Cândido Franco de Lacerda e vovó Elisa Whitaker de Oliveira Lacerda se casaram no dia 14 de julho de 1885. Ele tinha 29 anos e ela, 21. Eram primos, conheciam-se desde pequenos. Durante o namoro, vovô ia à cavalo até a fazenda do pai de vovó Elisa que era o Visconde de Rio Claro. Vovó Elisa era clara e loirinha, eu só a conheci de cabelo branco...

O retrato com toda a família foi das Bodas de Ouro dos dois. Eu me lembro muito bem da festa, tinha dez anos, quase onze, em 1935.

Tiveram oito filhos:

1o - Cândido – nasceu em 9 de junho de 1886 e faleceu a 9 de outubro de 1886.

2o - Brazilia (Zila) - nasceu em 24 de maio de 1887 e faleceu em julho de 1966 - casada com Amadeo Arruda Botelho.

3o - Candido – nasceu em 20 de dezembro de 1888 e faleceu poucas horas depois.

4o - Evangelina (Vangila) – nasceu em 26 de novembro de 1889 e faleceu em 23 de janeiro de 1987, aos 97 anos - casada com Alfredo de Paranaguá Moniz

5o - Asdrubal Franco de Lacerda – nasceu em 19 de junho de 1891 e faleceu em 22 de novembro de 1950 - casado com Beatriz de Toledo Piza e Lacerda

6o – Maria das Dores – nasceu morta em 31 de janeiro de 1893

7o - Hannibal Oliveira Lacerda – nasceu em 30 de julho de 1896 e faleceu em ------ casado com Marina de Camargo Lacerda

8o - Maria José (Marocas) – nasceu em 7 de fevereiro de 1903 e faleceu----- casada com Theodoro Quartim Barboza

Vovô Cândido e Vovó Elisa viajavam muito. Passavam temporadas na Europa, em estações de águas e em Paris. Vovó deixou muitos diários dessas viagens, quase sempre acompanhada de Tia Marocas porque os outros filhos ou estavam estudando ou já estavam casados. Trocava muitas cartas com os filhos e netos.

Num trecho do diário de 21 de setembro 1912, ela relata de Neuchatel: “Voltamos logo, jantamos e fomos escrever, eu escrevi uma longa carta à Vangila e Zila e Cândido escreveu à Asdrúbal e à Totó Lacerda, Maria escreveu à Caio e a Hannibal...”. Da Europa, em 1912 foram para os Estados Unidos e só voltaram ao Brasil no dia 31 de janeiro de 1913. Tia Marocas ficou interna num colégio na França sob os cuidados de uma governanta, Melle Levasseur... Eram outros tempos!

Meus pais

Papai e mamãe, Asdrúbal Franco de Lacerda e Beatriz Toledo Piza, casaram em 7 de dezembro de 1915. Moraram 5 anos com vovó Elisa na Rua Brigadeiro Tobias 66, como todos os filhos que casavam. Mamãe se deu muito bem com vovó Elisa, aprendeu um monte de macetes – como servir a mesa, quantos pratos, quantos copos. Mamãe sempre dizia que aprendeu muito com vovó Elisa que gostava de tudo muito em ordem. Tinha empregados muito antigos e recebia muito.

Cada domingo vovó Elisa recebia um dos filhos, com marido ou mulher e os netos. Não sei como era no dia de Tia Zila e Tio Amadeo, com tantos filhos!

Todos os dias 5, 15 e 25 do mês, durante todo o ano, ela recebia quem quisesse aparecer para um lanche. Amigas, primas, filhos e netos. Lembro que nós, primos, ficávamos observando tudo e dávamos muita risada quando uma das amigas enfiava empadinhas do lanche na bolsa!

Eu tinha dois anos quando vovô e vovó mudaram para a casa da Avenida Higienópolis.

A mulher de Tio Bilú, Tia Marina era meio estranha, umas das poucas mulheres na época que tinha carro. Uma verdadeira banheira branca e preta!

Papai e mamãe ficaram dez anos sem ter filhos, gostavam muito dos sobrinhos, de Caio, Mariucha, os dois mais velhos de Tia Vangila e depois João e Marion.

Meu pai construiu muitas casas na Rua Bahia e para muitos primos em São Paulo. Foi ele também que construiu a sede da Fazenda Santo Antonio, o Jahu, como era conhecida a fazenda de Tia Zila e Tio Amadeo.

Em 1923 papai estava construindo a casa definitiva para mamãe e ele morarem. Mamãe teve sarampo e logo depois descobriu que estava grávida. Nesse mesmo ano morreu Vovô Pisa e também uma filha de Tia Stella, portanto sobrinha de mamãe. Mamãe e Tia Stella eram muito amigas, vizinhas quase de frente a vida toda.

Nasci no dia 11 de setembro de 1924. A casa, para um casal sem filhos, teve que ser aumentada! Dois anos depois, nasceu Luly. A Revolução de 1924 foi um pouco antes do meu nascimento. Tia Marocas estava esperando o filho Paulo que nasceu no dia 9 de julho de 1924. Muita gente fugiu para as fazendas, mas como nasci em setembro, papai e mamãe acharam melhor ficar em São Paulo. Tio Theo e Tia Marocas foram para nossa casa na Rua Bahia, já tinham a Heloisa, a filha mais velha. A cidade foi bombardeada em muito lugares e papai e tio Theo saíam para comprar comida. Isso eu me lembro de mamãe contar, foi meses antes do meu nascimento.

Na Revolução de 1932 – a Constitucionalista – eu me lembro perfeitamente de papai fardado partindo como Major. Como ele era engenheiro, foi mandado para Espirito Santo do Pinhal com estrategista, fazendo mapas, não sei dizer bem o que mais ele fazia. Temos cartas e telegramas que Luly guardou. Levaram burros e cavalos do Paraizo para as tropas paulistas. O Tuto de Maria Flora que também era engenheiro, chamou papai a vida inteira de Major, era engenheiro também, mas estava abaixo de papai no pelotão. Tio Bilú também foi lutar, não me lembro onde. Todos os paulistas em idade para lutar, lutaram em 32. Nós ficamos na fazenda durante a revolução. Me lembro de papai voltar muito barbudo, tinha uma barba fechada e de farda verde.

Quando pequenas, nós íamos muito menos para o Paraizo. Papai foi obrigado a cuidar da fazenda quando vovô Cândido não quis mais cuidar. Aí papai ficou doente e não podia ficar indo e vindo, então ele passava temporadas maiores no Paraizo. Ficava lá com mamãe e vovó Júlia ia para nossa casa em São Paulo para ficar conosco. Não dava para papai ir e voltar, a viagem era longa, então mamãe ia com ele.

Papai comprou a parte dos irmãos no Paraizo, eu devia ter uns 15 anos. Chamou Luly e eu porque José não se interessava. Mas nós dissemos que queríamos que ele vendesse propriedades para comprar a parte dele no Paraizo. Ele vendeu então umas casinhas que tinha na esquina da Brasil com a Rebouças para comprar aos poucos a parte dos irmãos.

Tio Amadeu tinha um monte de fazendas. Tio Théo tinha um monte de fazendas, Tia Vangila morava no Rio de Janeiro e Tio Alfredo já tinha morrido quando papai comprou a parte dela. Eu já conheci Tio Alfredo muito doente, tinha uma moléstia degenerativa e foi perdendo os movimentos.

Como meu primo João contou, ele e Caio que era o irmão mais velho, passaram alguns anos em diferentes épocas, cuidando do Paraizo.

O Caio trabalhava na Estrada de Ferro Leopoldina como engenheiro formado. Um dia, com o trem em andamento, ele apoiou o cotovelo na janela do trem. Outro trem passou e cortou o cotovelo dele. Foi na própria Leopoldina, numa viagem perto do Rio, Teresópolis, talvez. E o João saiu procurando o Caio em vários hospitais. Conta que estava desesperado, não achava o irmão e, de repente, ele viu num hospital ou coisa que o valha, um sujeito, num cantinho encolhidinho… Queriam amputar o braço do Caio! João tirou o Caio de lá e o levou para casa. Sofreu onze operações no Rio. Ficou perfeito, mas ele sofreu, foi uma tristeza. Quem fez as cirurgias foi o sogro da Marion, um grande médico, Dr. Gouvea. No fim, Caio ficou com um braço um pouquinho mais curto, mas você nem reparava, tinha todos os movimentos. Ele guiava, escrevia… Foi depois do acidente que ele foi trabalhar no Paraizo. Uns anos depois.

Nas férias todos se encontravam na fazenda. Como o Caio e o João eram os primos mais velhos, papai e mamãe deixavam que saíssemos com eles e, realmente, nós fazíamos uma farra: nós fomos explorar a cachoeira grande, com facão para abrir as picadas, cortar os galhos. É o Buracão. Tem vários buracões, mas o do José (que fica nas terras que depois ficaram para José) para mim é o maior.

O Caio plantou algodão no Paraizo que deu muito dinheiro. Uma plantação na rampa no Jabaquara. Eram 70 alqueires, se não me engano. Ele dizia sempre que foi o início da fortuna dele. Deu um algodão maravilhoso, era uma terra muito boa, vermelha. Aí depois de um ano tio Théo abriu o frigorífico e o levou embora e o João ficou. Quando Tio Theo comprou o frigorífico em Cruzeiro, levou Caio como gerente.

O café que vovô Cândido plantou estava velhíssimo. Eram 400 mil pés de café. Lindo, mas depois ficou velho, tinha mais de cem anos. E papai já estava muito doente do coração, teve que fechar o escritório dele de engenharia que ia muito bem.

Sempre muito jeitoso, muito simpático, muito brincalhão, papai era muito querido por todos. As tias, primas e amigas da vovó amavam o jeito dele que tinha muita paciência e bom humor. Era chamado para fazer todas as reformas das casas da família toda e seguia todos os caprichos pedidos! Uma dessas primas quis reformar o telhado da casa pelo lado de fora, sem mexer em nada por dentro. Ele concordou, disse que teria que montar uma armação por fora. Ela disse que pagaria o que fosse para continuar morando na casa durante a reforma.

Outro dia o Carlos (meu filho) me trouxe uma coisa que ele descobriu na prefeitura: um terreno na Rua México com o nome de papai tirando a planta. Não sei dizer se ele chegou a construir a casa.

Papai construiu a casa da família no Guarujá, a Vila Pinhal (na Praia de Pitangueiras). A casa de Tio Amadeu, da Rua Conselheiro Nébias 815 também com entrada pela rua de trás, a Barão de Limeira, foi obra de papai. O terreno tomava o quarteirão inteiro, um casarão enorme, muito gostoso. As meninas desciam a escada pelo corrimão, era altíssima! Tinha uma sala de jantar muito grande, um quintal muito bonito e na metade do terreno tinha uma divisória, com umas oito ou dez jabuticabeiras imensas, todas produzindo. Uma beleza na florada e em novembro todas carregadas de jabuticaba. Nessa casa, Tia Zila e Tio Amadeu criaram os filhos, casaram as filhas – a Vanja, Lisota – com festas no jardim enfeitado.

Eu me lembro, numa dessas festas, que Tia Zila me pediu para fazer a maionese. Imagine a quantidade de ovos para fazer uma maionese para tanta gente! Não era barato ovo naquela época, era uma responsabilidade, acho que foram 25 ou 30 ovos...

Papai, enquanto fazia as casas da fazenda (Santo Antonio) de Jaú para tio Amadeu, morou com ele. Tio Amadeu era muito bonito, mas rabugento. A casa do Jaú era enorme e linda.

A irmã do tio Amadeu, prima Elisa, era casada com um militar alemão, Kingelhofer, era bravíssima. Eles não tiveram filhos, mas tio Amadeu tomou conta das terras e patrimônio dela quando ela foi morar na Europa, em Paris, acho que uns 14 anos. Quando perdeu o marido, voltou. No testamento, eles deixaram o Palmital, que era a fazenda que tinha cabido a ela e que tio Amadeu tinha tomado conta, para o irmão. Ela tinha vivido na Europa largamente com os rendimentos que recebia das terras. Então, deixou a fazenda para tio Amadeu porque ele tomou conta a vida inteira.

Tia Zila era um amor, um encanto de criatura, muito doce. A descrição que ela deixou do casarão e da lida no Paraizo são preciosas!

Em Junho nós passávamos um mês, as férias naquela época começavam antes por causa das festas juninas…

Chegávamos lá pelo dia 13, 15 de Junho para as festas de Santo Antonio, São João, São Pedro e ficávamos um mês inteiro. Eu me lembro de chegar no Paraizo e ver todo aquele capim roxo com florzinhas do capim, tudo roxo. Era um capim melado, andávamos pelo pasto e a bota ficava engraxada, brilhando. Uma espécie de manteiga natural que se passava nas botas. E passávamos os dias de bota. Para montar à cavalo, para caminhar.

Quando papai passava tempos lá, tinha companhia do João e eles conversavam muito. Papai sempre foi muito querido pelos sobrinhos. Nós participávamos também das conversas que se alongavam no terraço ou na sala de jantar quando fazia frio.

Teve um dia em que João e pegou um livro velho e muito grosso de receitas, daqueles que todo mundo tinha, acho que era o Rosa Maria e começou a ler em voz alta em tom teatral. As receitas eram de você chorar de dar risada: era mutum ou outras aves estranhas, você tinha que arrancar as penas… Eu chorava de rir.

O casarão era ainda o mesmo descrito por Tia Zila nos “Dias Ensolarados no Paraizo”. A sala de jantar era o lugar que todos ficavam depois do jantar que era muito cedo. Castiçais e lampiões eram a luz para os bordados ou leitura. Papai parecia se desligar do mundo, sentado na ponta da mesa, concentrado, com os cotovelos na mesa e as mãos no queixo, sempre lendo ou estudando. Podia cair o mundo que ele não se abalava... Aos nove anos, papai veio para São Paulo, interno no Colégio São Bento. Depois entrou na Engenharia da Poli e, em 1915, se formou. Ele deve ter sido da décima turma da Poli. A turma era muito pequena.

Logo que montou o escritório de engenharia, começou a ter as dores no peito – angina – coisa que hoje pode ser diagnosticado e tratado... Papai estava reformando a casa de vovó Elisa na esquina da Higienópolis com Angélica quando teve os primeiros infartos. Acho que foi em 1928, mamãe estava esperando o José. Papai se jogava no sofá porque tinha andado da Avenida Higienópolis até em casa, na Rua Bahia. Não era longe, uns cinco ou seis quarteirões. Ele se cansava muito, ficava sempre ofegante.

Tinha sempre uns bancos para sentar na fazenda porque papai e vovô tinham essa mania: andavam, sentavam um pouco... Acho que papai ficava cansado por conta do coração já nessa época.

A entrada central tinha um bancão de madeira e aí você entrava naquele hall com as pinturas representando as quatro estações como está até hoje! Um empreiteiro italiano que vovó descobriu foi quem construiu a casa.

Depois do hall à direita ficava a sala de vovó, à esquerda o saguão da escada, também como tem até hoje. O José só fez uma coisa na primeira reforma que ficou sensacional que foi fazer aquele banheirinho embaixo da escada que não atrapalhou em nada. O escritório, a escrivaninha de vovô, a mesma que está lá e aquele armário. Ainda não existia a escadinha que José fez que dava no porão, ele guardava as coisas lá embaixo.

À direita do hall de entrada, era a sala de visitas de vovó Elisa com papel de parede vermelho, aveludado, com uma janela que dava para o terraço e uma porta para o jardim. Havia duas portas: uma dava para um quarto de hóspede avulso, uma visita de algum comprador ou (do lado da sala, tinha saída só para essa sala). Quando Sérgio e eu éramos noivos, ele ficava nesse quarto que virou a sala grande que José reformou.

Além desse quartinho, tinha a salinha de piano de vovó, a outra metade era um quarto de dormir. Tinha um piano preto, papai tocava flauta, tia Vangila cantava, tinha uma voz linda; mamãe tocava piano e tinha um irmão de vovó Elisa, Henrique Whitaker de Oliveira que queriam levar para cantar na ópera de Berlim! O piano é o mesmo da vida inteira. Havia ainda a sala de jantar antiga.

Não tinha banheiro embaixo. Havia um único banheiro na casa inteira. A planta era de uma casa americana que vovô Candido tirou de uma revista. Era sobrado, o que não era absolutamente comum em fazenda. Foi em 1897 que ele construiu a casa. Subia-se a escada, aquela escada bonita, e dava num quarto de vestir, depois você entrava naquele quarto enorme, que era o quarto de dormir de vovô e vovó, que era onde mamãe dormia…

Tinha o quarto de vestir, depois o de dormir, que era onde mamãe dormia e tinha a cama de casal. Uma porta de um lado, uma porta do outro lado e a cama no meio. A porta da esquerda dava no quarto dos meninos e a da direita no das meninas. O quarto dos meninos era ligado com o das meninas. Para as meninas saírem, ou elas passavam pelo quarto dos irmãos ou pelo da mãe. Elas ficavam ali presas... No livrinho de Tia Zila, ela conta a história do dia em que Tio Amadeo pediu Tia Zila em casamento e Tia Vangila correu para o quarto dos meninos, que era o mais próximo e escreveu na parede a data. O João mandou fazer uma moldurinha de madeira, como um quadro. Em uma das festas do Paraizo, o Fernão, meu primo, pediu para ver o tal quadrinho. E não é que não existia mais!! Talvez alguém que não soubesse da história, tenha mandado pintar a parede. Era uma lembrança, uma pena...

Havia no corredor um banheiro que era uma coisa horrorosa: você tinha que tomar banho de banheira. Vovó Elisa ficou felicíssima no dia que mandou tirar a banheira antiga de mármore. Anos mais tarde, o João achou jogada no pasto a banheira de vovó Elisa. Imagino que ela não aguentava mais... No inverno, subiam baldes e mais baldes de água fervendo e quando eram despejados na banheira de mármore, a água esfriava! Coitada, nunca tomou banho quente!

Na parte de cima, ligada pela escada de serviço que era uma novidade, nenhuma casa tinha duas escadas, mas a planta americana que vovô se encantou tinha essa escada na planta. No fundo do corredor de cima ficavam dois quartos de empregada que mais tarde viravam nossos – meu e de Luly – eram grandes, com janelas. Tinha uma porta que era fechada quando ainda eram das empregadas.

Tempos mais tarde, papai um dia teve a feliz idéia de fazer mais um banheiro. Nós vínhamos com amigas, uma turma – Cecília Sohn, Nini, Lolita e as primas.

Onde era a copa, bem embaixo do banheiro de cima, ele fez um banheiro para nós com chuveiro, a coisa mais deliciosa do mundo! Não sei dizer se hoje é um dos lavabos...

A cozinha tinha um fogão no canto, daqueles de metal, mas de lenha, com forno também de lenha, uma grande mesa para os empregados comerem e meio de escanteio, num cantinho mesmo, uma piazinha para lavar legume.

Quando eu já era mocinha, papai comprou um fogão elétrico para facilitar a vida da cozinheira e a nossa. A casa ficava muito cheia nas férias. Ele comprou uma geladeira também. Eu tinha uns 15 anos, isso deve ter sido em torno de 1940, que é quando nós começamos a ir muito pra lá. Mesmo assim, lembro de quando o Roberto e o Carlos eram nenês, muitas vezes tive que descer até a cozinha e acender o fogão de lenha para esquentar mamadeiras em banho-maria. Era terrível...

No pomar, quando eu era menina, tinha algumas jabuticabeiras plantadas por vovô Cândido, as mais antigas. Depois papai e José plantaram mais e também laranjeiras e mangueiras e completaram o pomar. O João fez aquele rond point de tijolos debaixo das árvores na frente da casa como se vê até hoje. Ali perto, ao lado das jabuticabeiras velhas, buscávamos água – uma torneira ou biquinha com água que vinha da mata que era a água que se podia beber.

O terraço de cima do casarão era o terraço do quarto da mestra – a professora que vovô contratou e que Tia Zila descreve tão bem. Era a vista mais bonita do Paraizo! Depois foi reformado e virou o telhado do terraço da entrada que foi aumentado por José. Nesse terraço tinha um banco grande de madeira onde sentávamos para ver o por do sol. Não cheguei a pegar o carramanchão que o João descreve e que aparece nas fotografias. Um quarto da frente virou quarto de mamãe com mais um banheiro que dava para o corredor.

A reforma que José fez na sala de jantar, a primeira, ficou maravilhosa. As janelas de vidro até o piso com vista para o lago. Carmem e eu forramos com tecido o armário de louças, ficou lindo! Era muito bonito comer com aquela vista, aquele horizonte. Tinha um terraço que saía da sala de jantar, aparece em muitas fotografias, não existe mais. A sala de jantar com a porta para a sala de visitas com a lareira e a estante imensa que José fez na fazenda com o marceneiro Moacir. O retrato do bisavô José Lacerda de Guimarães na parede acima da lareira – o Barão de Arary. Um conjunto muito bonito das duas salas! O retrato da bisavó Clara, José morria de medo quando era pequeno... Do segundo casamento de vovô com a cunhada, lembro de Tia Lili que falava meio tatibitate e andava com passinhos curtos – a história de continuar a conversa depois de se despedir de todo mundo como “tia Lili” é por causa dela.

Carmem fez uma boa reforma na parte de serviço, na cozinha, ficou mais clara, arejada. Uma horta grande, sempre bem cuidada, perto da casa do administrador. Carmem era muito caprichosa, morava lá e cuidava do jardim com um jardineiro, tudo funcionava. José e Carmem davam muitas festas, recebiam amigos e, em janeiro, no aniversário dela, dia 21, lembro que ela fazia um camarão com pirão que as amigas adoravam.

A fazenda nunca teve problema de falta d’água. Tinha o famoso “carneiro” que levava água para dentro, mas desperdiçava um colosso para fora!

Quando os meus filhos e de Luly eram crianças, nós revezávamos – quinze dias cada família – porque não cabia todo mundo! Era uma molecada enorme, uma farra. Depois Luly passou a usar a casa ali ao lado e dava para reunir a turma toda.

2009